terça-feira, 17 de outubro de 2006

Coerência e burrice

Muitas pessoas, incluídos anônimos, intelectuais e artistas, passam a vida aferrados ao princípio da coerência. Abandonar um ideal defendido com ardor e desprendimento por longo tempo, nem pensar. Além disso, o que diriam os amigos e admiradores?
O ex-ministro da ditadura Jarbas Passarinho tem assim razão ao afirmar, em seu artigo periódico publicado no jornal O Estado de S. Paulo de hoje, que a esquerda pode ter várias faces, mas mesmo dividida não vota em quem não pertença à grei. Como exemplos desse comportamento cita Chico Buarque, Frei Betto e o vice de Heloísa Helena na candidatura à Presidência, o economista autodidata César Benjamin. E no mesmo jornal uma leitora, Ruth de Souza Lima e Hellmeister, na seção Fórum dos Leitores, lamenta a decisão do PSOL de tender à adesão a Lula, depois de toda a violenta campanha contra ele desfechada pela senadora alagoana no primeiro turno.
Quer dizer, a coerência defendida por esse pessoal obedece a graduações. Determinados princípios podem ser deixados de lado, menos o principal, a coerência ideológica. À combativa senadora só faltou dizer, com todas as letras, que além de corruptos e ladrões de toda espécie o PT abriga alguns assassinos. Em mais de um momento deixou essa insinuação no ar, quando nem os líderes dos partidos da oposição ousaram a tanto, mesmo nos acalorados debates em torno dos casos paulistas de Celso Daniel, em Santo André, e Toninho, em Campinas. Vale mencionar, aqui, a recente denúncia da revista Veja, de que o petista Gedimar Passos, preso com parte do dinheiro levantado para pagar o dossiê calunioso do chefão dos sanguessugas, Luiz Antônio Vedoin, dono da empresa Planam, contra políticos tucanos, só mudou seu depoimento anterior à Polícia Federal, passando a inocentar o guarda-costas de Lula, Freud Godoy, depois de receber nas dependências da própria força, na calada da noite e na presença do delegado autor da permissão para a entrada, uma visita irregular de Godoy, acompanhado de outro guarda-costas palaciano, José Carlos Espinoza. É impossível saber o que Godoy e seu colega falaram para Gedimar, porque nem eles nem o delegado envolvido são tontos a ponto de dar detalhes para a imprensa. Mas pouca coisa não deve ter sido.
Quando a coerência se confunde com a cegueira, no entanto, o que antes poderia ser visto como um traço de honestidade passa a sê-lo como sinônimo de burrice. É clássica a imagem do homem que monta uma idéia pela vida toda, pela simbiose com a cavalgadura.
A Chico Buarque, um gênio em seu ofício, autor tão importante para a nossa música popular quanto Noel Rosa, certamente não faltam luzes, assim como para o escritor Luis Fernando Verissimo ou para o ator Paulo Betti. Mesmo assim, os três, entre milhões de outros, votam em Lula, Chico por não se comover com o discurso anticorrupção do PFL, Verissimo por manter a visão de ser o neoliberalismo um monopólio da direita e Betti por entender que política se faz pondo a mão naquilo que começa com a letra 'm'. As justificativas dadas por eles para seus votos sintetizam o pensamento da parcela mais esclarecida da população que pretende assegurar mais quatro anos de mandato para o chefe da nação mais enlameado da história da República. As falcatruas cometidas, apesar da dimensão monstruosa, são perdoadas ou, pior, coonestadas, com o argumento de não existir uma prática política limpa. E quanto a programas de governo essa camada de eleitores pró-Lula enxerga progressismo na distribuição de simples esmolas. O grave nesse comportamento é o fato de a miopia voluntária cultivada em nome da ideologia traduzir-se em prejuízos alheios, pelo retardamento dos avanços do país.
Com a adesão ao capitalismo de todos os bastiões do socialismo desde a queda do muro de Berlim, em 1989, inclusive da Rússia, de seus antigos satélites e até da Albânia, com exceção de tiranias como Cuba e Coréia do Norte, tornou-se algo démodé qualificar atitudes de esquerda como progressistas. O mundo mostrou que não havia como distribuir riquezas antes de acumulá-las pela via do conservadorismo econômico, numa confirmação da tese da partilha do bolo somente após o crescimento deste. A inversão de etapas, como ficou provado repetidas vezes, fazia perdurar e ainda aprofundar o atraso do país, ao invés de abreviá-lo.
No caso brasileiro, o governo atual poderia ser aceito se fosse apenas produto de um equívoco ideológico. Mas, longe disso, ele constitui uma fraude porque, para começar, seu Bolsa-Família, uma junção de programas criados pelo presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso, diante da impraticabilidade do Fome Zero de Lula, assumiu um caráter meramente eleitoreiro. Em lugar de ensinar a pescar, limita-se a dar o peixe. Que futuro tal prática assistencialista de cunho demagógico pode assegurar para o país? Pois, tirando o assistencialismo, o que o atual governo fez foi manter a política econômica herdada do antecessor, acentuando a ortodoxia com o aumento dos juros reais. Se o governo FHC foi neoliberal – como quer Verissimo, a despeito de todas as reformas modernizantes feitas na época, incluindo as privatizações anatematizadas pelo PT -, este governo Lula o foi em dobro. A prova é que nunca os bancos lucraram tanto, enquanto o país deixa de aproveitar a conjuntura internacional favorável para crescer mais.
O discurso de esquerda revigorado para o segundo turno das eleições, por parte dos detentores do poder, não passa portanto de um engodo. Só não enxerga essa verdade aquele que renuncia às próprias luzes para adotar as de sua cavalgadura.

Um comentário:

Anônimo disse...

necessario verificar:)