quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Visão turva

O escritor chileno Ariel Dorfman escreve para o jornal The New York Times, a respeito da morte do facinoroso ex-ditador Augusto Pinochet (trecho da tradução publicada hoje em O Estado de S. Paulo): "A fim de nos livrar de sua terrível influência, deveríamos ter deixado para sua família e seus poucos amigos íntimos a tarefa de chorar sua morte. Em vez disso, somos obrigados a assistir ao triste espetáculo de um terço do país lamentando sua partida, um terço do Chile ainda cúmplice silencioso de seus crimes, ainda justificando seus crimes, ainda festejando o fato de o general ter derrubado Salvador Allende, o presidente constitucional do Chile".
Responsável por ordem direta ou acobertamento pela morte de mais de 3 000 pessoas no Chile, na violenta repressão desfechada sobre a população civil identificada com a resistência ao golpe de 11 de setembro de 1973, Pinochet morreu no domingo passado, aos 91 anos de idade, e teve as cinzas do corpo cremado (por medo de alguma represália por parte dos familiares) enterradas ontem num cemitério de Santiago, sem honras de Estado, apenas com as devidas à sua condição de ex-comandante do Exército chileno. A cerimônia, que a presidente do país, Michelle Bachelet, esperava ver transcorrer com ordem e calma, registrou um incidente. Um discurso político de exaltação ao morto por parte de seu neto, o capitão Augusto Pinochet Molina, causou mal-estar a alguns dos 4 000 presentes, sobretudo à representante do governo, a ministra da Defesa, Vivianne Blanlot, que respaldada pela presidente exigiu providências do comando do Exército. E o capitão foi expulso hoje das fileiras da corporação.
As feridas abertas pelo golpe e pela repressão ainda estão longe de cicatrizar no Chile, como mostra o artigo do escritor Dorfman. Mas pelo menos, por lá, um processo judicial foi movido contra o ex-ditador, que só não foi julgado e condenado pelos crimes graças às artimanhas de seus advogados. Já no Brasil, o país da pizza, o passado tenebroso da ditadura militar foi empurrado para baixo do tapete. Em nome de uma Lei de Anistia que contemplou os dois lados, o da repressão e o da resistência civil, em lugar do ajuste de contas para curar as chagas assiste-se ao mutismo governamental, à ocultação de provas e documentos e à compra do silêncio por meio de régias indenizações, pagas com o dinheiro do contribuinte, aos perseguidos pelo regime militar e seus familiares.
Não é de admirar, em tais circunstâncias, que cadetes do Exército achem muito natural homenagear em sua formatura o general Emílio Garrastazu Médici, o chefe da ditadura no período mais negro da repressão deflagrada no país depois do golpe de 1964. E como, quando uma pizza espalha seu cheiro, outros também tentam locupletar-se com ela, mesmo não passando de comensais surgidos depois da ditadura, deputados do Congresso, com a maior cara-de-pau, tentaram aprovar um projeto que anistiaria todos os sanguessugas e mensaleiros da atual legislatura ainda não julgados, dificultando a reabertura dos respectivos processos na próxima. Os autores da tentativa precisaram recuar diante da grita de líderes da oposição, mas nada indica que não possam voltar à carga mais adiante.
Nesse novo episódio vergonhoso para o país, tramado no recinto da Câmara pelo líder do PT e seus aliados do PP, do PMDB, do PCdoB, do PL e do PSC, enfim, os mesmos de sempre, parece ter prevalecido o entendimento de que as urnas de outubro não apenas consagraram um candidato presidencial, mas deram permissão para que se passe a borracha nos crimes de corrupção cometidos por parlamentares da situação e outros apaniguados do poder reconfirmado. Vai daí que até a CPI dos Sanguessugas, criada no calor da hora, antes das eleições, entra no clima de liberou geral e decide acusar apenas quatro pelo dossiê Vedoin, os dois petistas presos com 1,75 milhão em reais e dólares em São Paulo, Gedimar Passos e Valdebran Padilha, mais o suposto chefe da operação, Jorge Lorenzetti, e o ex-assessor de campanha ao governo paulista do senador Aloizio Mercadante, Hamilton Lacerda. Se era para chegar a resultado tão pífio não havia necessidade de uma CPI.
Quando a bandalheira assume uma dimensão como a atual, na política, até pessoas mais bem-intencionadas chegam a perguntar com seus botões se não era melhor no tempo da ditadura. Pelo menos havia autoridade na época, raciocinam – e os cadetes da Academia de Agulhas Negras que vão homenagear Médici deixam de ser vistos como uns energúmenos para passar a sê-lo como cidadãos patrióticos e conscientes.
Até quando a falta de senso nos impedirá de ver um caminho reto para a democracia brasileira?

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