quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

O ladrão de casaca

É antigo o fascínio da indústria do cinema por um personagem politicamente incorreto, que subverte a tradicional ascendência do bem sobre o mal na definição dos papéis de mocinho e bandido: Arsène Lupin, o ladrão de casaca, criado pelo escritor francês Maurice Leblanc. Uma das aventuras de Lupin, retirada da série de romances que fizeram sucesso na primeira metade do século passado, foi filmada já em 1909, praticamente no alvorecer do cinema, num curta-metragem francês. O primeiro longa surgiu em 1916, com o ator Gerald Ames como Lupin, numa produção inglesa. No ano seguinte foi a vez de outro filme, agora americano, com Earle Williams no papel-título. Nas décadas seguintes, com o advento do cinema falado, o personagem continuou a ser retratado nas telas, sem muita freqüência mas sempre tendo seu nome a encabeçar o título, como nos romances de Leblanc. A crítica considera As Aventuras de Arsène Lupin, de 1957, dirigido pelo francês Jacques Becker e com o ator Robert Lamoureux, o melhor filme de todos. Mas a principal curiosidade é que o elegante ladrão protagonizou até um desenho animado japonês de longa metragem, realizado no mesmo ano do filme de Becker por Hayao Miyazaki. De olho nas bilheterias, os produtores do desenho misturaram alguns personagens da terra inventados aos originais, além de cometer a heresia de fundir numa só pessoa Clarisse e a condessa de Cagliostro, que nos romances são duas mulheres distintas. Lupin claramente inspirou ainda outros filmes não referidos a ele, como Ladrão de Casaca (1955), do mestre do suspense Alfred Hitchcock, com Cary Grant, e O Ladrão Aventureiro (1967), do grande diretor francês Louis Malle, com Jean-Paul Belmondo.
O fascínio pelo personagem é explicável. Embora caminhe pela senda do crime, Lupin é acima de tudo um cavalheiro, incapaz de matar ou de cometer violências gratuitas contra suas vítimas e os policiais que o perseguem sem sucesso, como o inspetor Ganimard, embora sendo um perito em artes marciais. Despreza o dinheiro e mira só em objetos de arte e jóias finas para furtar, algumas destas do colo de mulheres que não esquece de galantear, e sempre preferindo situações desafiadoras ao talento e à inteligência às mais fáceis. Apreciador de charutos e vinhos de boa cepa, é ao seu modo um bon-vivant, um personagem típico da belle époque francesa da passagem do século 19 para o 20. Com tal perfil, nunca poderia ser, portanto, um reles bandido. Não é de admirar que mesmo atuando no lado oposto ele se tenha tornado um competidor, na literatura, de sagazes detetives como Sherlock Holmes, de Conan Doyle, Hercule Poirot, de Agatha Christie, e o inspetor Maigret, de Georges Simenon.
A TV paga, na rede Telecine, exibiu ontem o mais recente Arsène Lupin do cinema, uma produção francesa com título homônimo de 2004, dirigida por um cineasta com sobrenome de mulher, Jean-Paul Salomé, e que contou também com dinheiro italiano, espanhol e inglês. Apesar de o dentuço ator Romain Duris parecer algo deslocado no papel do fino ladrão-cavalheiro e de o filme ser do tipo over, exagerado nos movimentos de câmera, nos cortes nervosos e na sucessão de situações de perigo, em prejuízo do aprofundamento psicológico dos personagens e da verossimilhança do roteiro, o produto final não deixa de ter algumas qualidades. O melhor dele são as atrizes. A inglesa Kristin Scott Thomas, de O Paciente Inglês e Assassinato em Gosford Park, está fascinante como a sedutora condessa de Cagliostro, um misto de dama da nobreza com feiticeira dona do tempo e assassina, e a parisiense Eva Green, de quem o cineasta Bernardo Bertolucci, seu diretor em Os Sonhadores (The Dreamers, 2003) disse que "de tão bela chega a ser indecente", faz uma adorável Clarisse de Dreux-Soubise. Eva, hoje com 26 anos, que pôde ser vista ainda em Cruzada (Kingdom of Heaven, 2005), de Ridley Scott, e atua no próximo filme da série do agente 007, James Bond, é filha da atriz francesa já aposentada Marlène Jobert e tem uma irmã gêmea chamada Joy.

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