terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Engajada ou alienada?

Na sua esplêndida crônica publicada hoje nos jornais O Globo e o Estado de S. Paulo (clique aqui para ler a íntegra, no site de O Globo. Quem não é assinante precisa cadastrar-se para ter acesso), Arnaldo Jabor fala de sua decepção com a Bienal. "Os trabalhos repetem os mesmos códigos e repertórios: terra arrasada, materiais brutos e sujos, desarmonia, assimetria, uma busca deliberada da feiúra, uma clara vergonha de ser 'arte', vergonha de provocar sentimentos de prazer", escreve. "A fruição poética é impedida, como se o prazer fosse uma coisa reacionária, 'alienada', ignorando o 'mal do mundo', que tem de ser esfregado na cara do espectador para que não esqueça o horror social e político que nos assola. É como se a própria arte fosse uma babaquice a ser evitada."
Depois do impacto negativo causado nele por essas obras, Jabor foi ver, segundo escreve, a exposição Raízes da Forma, no mesmo Museu de Arte Moderna de São Paulo. E ao deparar com a manifestação do belo na mostra rememorativa do movimento concretista que ocorreu nos anos 50, manifestação ausente da Bienal, diz ele: "(...) diante das formas puras, reencontrei-me com a transcendência, sim, ali, no concreto. Sim, a arte que nos pacifica, eleva, nos silencia. E tive a certeza inapelável: a forma é tudo. Na forma está a verdade, muito mais que na gritaria de denúncias e conteúdos desesperados como panfletos. No silêncio da forma a beleza nos espera, a esperança de sentido nos aplaca. Na beleza das formas organizadas, no desenho da razão está um sentido misterioso, mas imperioso para a vida. Lembrei-me então de uma frase de Stravinski: "A obra de arte deve ser exultante". E entendi que desistir da beleza é uma confissão de derrota, é legitimar os inimigos."
Em sua crônica Jabor retoma portanto uma discussão tão antiga quanto irresolvida, a da pretensa dicotomia existente entre arte 'engajada' e arte 'alienada'. Teóricos da linha de frente de defesa do primeiro tipo de arte, como o filósofo marxista húngaro George Lukács, tiveram largo consumo na Faculdade de Filosofia e Letras da USP, durante a década de 60 e mesmo depois. Com a cabeça feita por tais leituras, houve críticos que tentaram menosprezar até a obra de Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, com o argumento de que sendo mulato e filho de lavadeira com pintor de paredes, sem instrução escolar formal e ainda por cima pobre durante boa parte da vida, ele não poderia ter construído uma literatura tão 'branca', cosmopolita e desligada da realidade vigente em seu tempo no país, quando a abolição da escravatura e a República foram decretadas com o escritor já perto dos 50 anos de idade.
Falácia pura, porque, se como Jabor lembra não pode haver arte numa caixinha com excrementos colhidos do próprio artista, também não existe arte na manifestação desprovida de talento e transcendência do que quer que seja, apenas pelo fato de expressar a miséria e o horror circundantes. Guernica, de Picasso, Os Fuzilamentos de Terceiro de Maio de 1808, de Goya, os Ciprestes, de Van Gogh, ou O Grito, de Munck, ao contrário, embora trabalhassem com os mesmos registros da vida externa ou interior de cada artista, cunharam-se como obras-primas pela genialidade com que a forma de expressão foi utilizada, com o simbolismo mimetizando a visão da realidade e o sintético em lugar do analítico na sintaxe da linguagem.
Mesmo nos tempos atuais, quando a banalização da vida raia o absurdo, seja pela ação de bombas na Palestina, no Iraque e no Líbano, seja pelo efeito da fome na África setentrional, seja ainda pela prática de assassinatos cruéis ligados à política ou ao crime, como o do casal e do filho queimados vivos dentro de um carro em Bragança Paulista, na noite de domingo passado, porque os autores do roubo a uma loja não queriam deixar testemunhas, os cânones da arte continuam valendo.
A questão não está em edulcorar ou não a realidade, até porque esta sempre supera a arte na violência e no horror. A chave, como diz Jabor, se encontra na forma, e não no conteúdo. Mas saber trabalhar essa forma é que são elas.
Os verdadeiros artistas sabem, e para comprovar isso basta visitar um grande museu ou a Capela Sistina do Vaticano, onde o conjunto de belezas reunido é tão impressionante que dá vontade de sentar no chão para chorar de êxtase. Nada a ver com caixinhas de excrementos. Nem com essa discussão boba sobre engajados e alienados, como se a arte, esse domínio no qual os homens chegam a alcançar alturas inacreditáveis, quase divinas, pudesse ser reduzida a simples rótulos.

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