sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Justiça mais justa

Demorou, mas finalmente sobe para a derradeira instância, a sanção presidencial, a criação da súmula vinculante, um instrumento jurídico capaz de desafogar imensamente os tribunais brasileiros e com isso permitir que eles tenham melhor imagem perante a população. Prevista num dos projetos da série de reforma do Judiciário, aprovada ontem por voto simbólico na Câmara dos Deputados, a súmula vinculante fará com que algumas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal adquiriam quase força de lei para todas as demais cortes da Justiça no país, evitando assim o prolongamento de pleitos judiciais por recursos apresentados às várias instâncias.
Trata-se de medida profilática de grande interesse social, ainda mais porque a criação da súmula, baseada em decisões passadas do Supremo, poderá ser solicitada por órgãos governamentais dos três poderes, a começar da própria Presidência da República e da Advocacia-Geral da União, além do Congresso Nacional, e também por entidades de defesa civil como a Ordem dos Advogados do Brasil, e do patronato e dos trabalhadores do setor privado como as confederações da indústria, do comércio e da agricultura e as sindicais. Com tanta gente podendo requisitar a criação das súmulas, certamente haverá quem queira legislar apenas em causa própria, em prejuízo de terceiros. Mas contra isso existirá a salvaguarda de a criação de uma súmula poder ser questionada ao próprio Supremo, e este poder derrubá-la por decisão plenária.
Enfim, podemos estar no limiar de um novo tempo, com uma Justiça mais atuante e também mais justa, por servir menos de instrumento do poderio econômico do que hoje. O lema de que a Justiça tarda mas não falha nunca se aplicou ao Brasil. Aqui, ela não só ela tarda como ainda falha, sobretudo em relação às demandas apresentadas pelos mais humildes, favorecendo assim os ricos e poderosos. Quem sabe se, com a súmula vinculante, isso possa começar a mudar.

Beleza dolorida

Certos termos da nossa língua têm uma expressividade incomum. É o caso do adjetivo 'lancinante', segundo o dicionário Aurélio apenas um sinônimo de 'muito doloroso, pungente ou aflitivo'. Pode ser, mas 'lancinante' diz mais. Lembra uma dor dilacerante, e não apenas aquela que se sente por fisgadas, outra interpretação dada ao termo pelo mesmo dicionário.
A palavra ganha ainda um charme especial quando aplicada como qualificativo de substantivos como 'beleza'. Sim, porque até a dor pode ser bela, na linguagem dos poetas. E beleza lancinante tem a música Mais Simples, de José Miguel Wisnick, já gravada por duas grandes cantoras, Zizi Possi e Ná Ozzetti.
Professor de teoria literária e literatura brasileira na USP, Wisnick é um erudito que tem como paixões, além dos livros, a música e o futebol. Estudou piano desde os 6 anos de idade, e aos 17 participou de um concerto no Teatro Municipal de São Paulo. Arrisca-se também a cantar, mas seu forte é mesmo como pianista e compositor.
"É sobre-humano amar/cê sabe muito bem/é sobre-humano amar sentir doer/gozar/ser feliz/.../é sobre-humano viver/e como não seria?/.../a vida leva e traz/a vida faz e refaz/será que quer achar/sua expressão mais simples". Não é sempre que se depara com uma letra dessa qualidade na música brasileira. Nem com uma melodia tão refinada quanto a de Mais Simples, que você pode ouvir clicando aqui, em arquivo da Rádio UOL. Zizi Possi canta, acompanhada ao piano por Wisnick.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Elifas e Adoniran


Adoniran Barbosa, por Elifas Andreato em capa de disco

A abertura, hoje em São Paulo, de uma retrospectiva da carreira de Elifas Andreato, em homenagem aos seus 60 anos de vida, é uma oportunidade para o público revisitar a marcante obra gráfica desse artista diferenciado. Paranaense de Rolândia e operário na juventude, Elifas trabalhou na Editora Abril, onde subiu da gráfica para a redação para se tornar diretor de arte. Estava aberto o caminho para que ele, depois de envolver-se com o pessoal do meio artístico, produzisse uma grande quantidade de material como capas de discos e de livros, além das inúmeras feitas para revistas, e cartazes de teatro. Como militante da oposição ao regime militar, foi um dos fundadores e colaboradores de dois célebres veículos da imprensa alternativa da época, Opinião e Argumento.
A ilustração acima, feita por Elifas para capa de disco, capta com perfeição a personalidade de Adoniran Barbosa, cujas composições musicais representam o maior testemunho de que São Paulo não é, como querem os cariocas, o túmulo do samba. Filho de imigrantes italianos nascido em Valinhos, interior paulista, em 6 de agosto de 1910, e morto em 23 de novembro de 1982, na capital do estado, Adoniran entregou marmitas e vendeu tecidos na juventude, enquanto dava vazão à sua veia de compositor e cantor em programas de calouros em rádios. Já conhecido – vencera um concurso carnavalesco da Prefeitura paulistana com a marchinha Dona Boa, em 1934 -, e tendo adotado o pseudônimo Adoniran Barbosa (seu nome de batismo era João Rubinato), ele se lançou definitivamente para a fama quando a Rádio Record o contratou como ator cômico, locutor e discotecário, em 1941. Durante décadas seu personagem Charutinho, um favelado negro e dado à bebida, marcou época, e até hoje há programas esportivos de rádio com seus sucedâneos, todos com aquela voz grossa e pastosa a tecer considerações sobre o Corinthians, seu time do coração.
Na música, com seu talento para compor personagens, Adoniran criou uma espécie de alter-ego de Charutinho, só que branco e ligado à colônia italiana da região paulistana do Brás e adjacências (estendidas até o Jaçanã, na zona norte, em seu imortal Trem das Onze, de 1965), mas igualmente pobre e semi-analfabeto. Foi um gênio ao transpor para letras de música esse peculiar modo de falar dos ítalo-brasileiros de São Paulo, assim como o da gente pobre e iletrada que se amontoa nas favelas e em alguns bairros da periferia. De mais de uma maneira, portanto, personificou o clown desenhado por Elifas Andreato, com sua preocupação em fazer o público rir.
Mas também sabia fazer chorar. O autor de um dos mais belos versos da música popular brasileira, 'Deus dá o frio conforme o cubertô (cobertor)', em Saudosa Maloca, de 1955, compôs além de seus famosos sambas obras-primas da dor-de-cotovelo como Vila Esperança, Prova de Carinho e, sobretudo, Bom Dia, Tristeza, esta, musicada por ele sobre letra de Vinicius de Moraes, criador, aliás, da frase depreciativa sobre o pendor paulista para o samba. 'Bom dia, tristeza./Que tarde, tristeza,/Você veio hoje me ver'. Os versos do grande Vinicius ganharam uma melodia maravilhosa de Adoniran.
Perto do fim da vida, ele podia ser visto com freqüência, solitário e triste como o clown de Elifas, num bar da rua Major Quedinho, na região central de São Paulo. Com seu cachecol amarronzado no pescoço e um chapéu de feltro meio de banda na cabeça, pedia sempre uma sopa no balcão, tomava-a devagar e depois se ia. Soube-se depois de morto que era além de tudo um exímio artesão em madeira. Deixou esplêndidos trenzinhos coloridos, com locomotiva e vagões.

Esfinges humanas

Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?


Esse poema, Esfinges, extraído do livro Pássaro de Vidro (Editora Hedra, 2006), do poeta e jornalista Carlos Machado, retrata bem a incomunicabilidade da alma humana. Com o poder de síntese próprio da linguagem poética, revelado sob versos construídos quase como prosa, o autor penetra no abismo que existe entre o aparente e o real, o exibido e o oculto, o fingido e o sentido no jogo das relações humanas. Para além da falsidade do ouro nos dentes, o espelho mostra a esfinge que cada um de nós é. E ao proteger nosso interior com uma couraça, por medo de desnudar nossas fraquezas, também falhamos na tentativa de decifrar outras esfinges.

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Choque de moralidade

Paulo Autuori é um vencedor, tanto como técnico de futebol quanto como pessoa. Educado, de fala mansa embora com voz de barítono, mesmo depois de estrear com uma sonora goleada contra o Corinthians, aplicada por seu então time, o São Paulo, no Campeonato Brasileiro do ano passado, preferiu atribuir o resultado às artes do acaso. Em nenhum momento cantou de galo para os repórteres que o entrevistavam. No fim do ano, outro feito. O São Paulo foi campeão mundial interclubes em Tóquio, e de novo ninguém ouviu Autuori cacarejar sobre seus méritos.
Agora, quando se lê uma entrevista dada por ele ao jornal O Estado de S. Paulo no Japão, país no qual dirige hoje o Kashima Antlers, surge um Paulo Autuori por inteiro. Entende-se que ele não apenas parece ser, mas é de fato um sujeito digno e um brasileiro com 'b' maiúsculo. O seguinte trecho, em resposta a uma tentativa de comparação do Brasil com o Japão na área de segurança, feita pelo repórter Eduardo Maluf, é exemplar:
"O Brasil não é parâmetro para segurança, porque aí a coisa é absurda. A segurança deveria ser algo normal, como aqui. É incrível o que ocorre no Brasil, qualquer cidadão se sente inseguro. E o pior é que a gente perdeu o poder de indignação. Veja, há pessoas com problemas graves, denúncias, sendo eleitas. Precisamos tomar um choque. Não adianta a pessoa se indignar quando seu clube perde, quando a seleção perde. As pessoas têm de se indignar com as coisas realmente importantes. Vivemos crise de princípios. O problema é a questão de o brasileiro ser o povo da esperança. Não existe viver de esperança. A gente vive de realidade."
O choque de moralidade pregado por ele é o mesmo que no passado políticos como Mário Covas defenderam. Pena que esse choque, até agora, não tenha ocorrido nem dê sinais de algum dia vir a ocorrer.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Os ventos da América

"O golpe do impeachment de Clinton fracassou, mas três anos depois, graças à clamorosa fraude eleitoral na Flórida, os ultra chegaram à Casa Branca com o renascido religioso George W. Bush. A partir de então, ou mais exatamente do 11 de Setembro, a pretexto da guerra ao terror, os Estados Unidos passaram a viver sob um regime aparentado ao autoritarismo.
As evidências dificilmente poderiam ser mais abundantes: um Congresso invertebrado (além de corrupto e o mais ocioso em 60 anos), a mídia em geral acovardada, o dissenso perseguido, um presidente acima da lei e um vice defensor da tortura de suspeitos de terrorismo - praticada, aliás, no Iraque, em Guantánamo e onde quer a CIA terceirizasse os seus interrogatórios. Uma profusão de normas liberticidas de duvidosa legalidade e de procedimentos tipicamente ditatoriais tornaram a América irreconhecível. Mas, com tudo isso à mostra, nunca duvidamos de que a democracia americana sairia da era Bush incólume.
O julgamento dos que se aproveitaram do trauma do 11 de Setembro para tentar desfigurá-la começou na terça-feira. As urnas não só revigoraram as instituições democráticas, mas atestaram a inigualável autenticidade da democracia que encantou Alexis de Tocqueville. Pela primeira vez, a Câmara será presidida por uma mulher, Nancy Pelosi. Pela primeira vez, a crucial Comissão de Orçamento da casa será dirigida por um negro, Charles Rangel. Pela primeira vez, um Estado WASP como Massachusetts será governado por um negro, Deval Patrick. E, pela primeira vez, enfim, os principais presidenciáveis democratas são uma mulher, a senadora Hillary Clinton, e um negro, o senador Barack Obama. 'Às vezes', escreveu ontem no New York Times o colunista (negro) Bob Herbert, 'você consegue sentir os ventos da história soprando.' São os ventos da América."
(Trecho final do admirável primeiro editorial da edição de hoje de O Estado de S. Paulo, publicado com o mesmo título desta nota. O jornal se refere à estrepitosa vitória democrata nas eleições parlamentares e para governos estaduais, obtida sobre os fundamentalistas de direita republicanos representados pelo presidente George W. Bush e seus seguidores)

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

O Pequeno Príncipe


O pequeno viajante, no traço de Saint-Exupéry

O falso intelectualismo menospreza O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Alguém dessa corrente definiu-o como 'o livro das misses', e a turba ignara foi atrás. Provavelmente, nem o autor da definição nem suas vaquinhas de presépio leram algum dia o livro.
Que livro de miss coisa nenhuma, embora algumas moçoilas carnudas dadas a exibir-se na passarela possam até tê-lo lido. E, se o fizeram, agiram melhor que os detratores de sua inteligência. Aprenderam pelo menos algumas lições básicas de como ser gente, por meio dessa enternecedora fábula sobre um pequeno viajante sideral que, tentando entender os homens, recolhe seus mais preciosos ensinamentos de uma flor e de uma raposa.
Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon, na França, em 29 de junho de 1900, e desapareceu em local ignorado, talvez no Mar Mediterrâneo, quando o avião que pilotava foi abatido pelas tropas nazistas, em 31 de julho de 1944. Formado em arquitetura na Escola de Belas-Artes de Paris, tornou-se voluntário do Correio Aéreo como membro ativo da Resistência Francesa contra a ocupação do país pelas forças de Hitler na Segunda Guerra, e participou de diversas ações arriscadas ao voar sobre as linhas inimigas, até seu desaparecimento.
Seus poucos livros, entre eles O Pequeno Príncipe, estiveram proibidos oficialmente de circular na própria França ocupada, governada por colaboracionistas. Há quem diga que o soldado nazista que acertou seu avião levava consigo um exemplar do Príncipe, mas isso não deve passar de lenda. O livro foi publicado pela primeira vez em 1943, já com as ilustrações pintadas a aquarela por Saint-Exupéry, e traduzido para o alemão no ano seguinte, pouco antes da última missão militar cumprida pelo autor. "Só se vê bem com o coração", disse ele, numa das máximas colocadas em sua fábula. "O essencial é invisível aos olhos." Quem hoje tenta, por ignorância ou por fazer pouco da ética das relações sentimentais, diminuir a importância dessa obra maiúscula da literatura mundial, provavelmente nunca aprendeu essa lição.
A seguir, alguns trechos de um capítulo essencial do livro, o de número 21, no qual o pequeno viajante interplanetário encontra a raposa.
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
Mas a raposa voltou à sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra.
O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! disse ela.
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
Foi o principezinho rever as rosas:
- Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Chutômetro

Esta excelente piada circula por e-mail. Ela mostra o quanto tendemos a agir baseados apenas em meras suposições:
"Com a aproximação do inverno, os índios foram ao cacique perguntar:
- Chefe, o inverno este ano será rigoroso ou ameno?
O chefe, vivendo tempos modernos, não tinha aprendido como seus ancestrais os segredos da meteorologia. Mas, claro, não podia demonstrar insegurança ou dúvida. Por algum tempo olhou para o céu, estendeu as mãos para sentir os ventos e, em tom sereno e firme, disse:
- Teremos um inverno muito forte... é bom ir colhendo muita lenha!
Na semana seguinte, preocupado com o chute, foi ao telefone e ligou para o Serviço Nacional de Meteorologia e ouviu a resposta:
- Sim, o inverno deste ano será muito frio!
Sentindo-se mais seguro, dirigiu-se a seu povo novamente:
- É melhor recolhermos muita lenha... teremos um inverno rigoroso!
Dois dias depois, ligou novamente para o Serviço Meteorológico e ouviu a confirmação:
- Sim... este ano o inverno será rigoroso!
Voltou ao povo e disse:
- Teremos um inverno muito rigoroso. Recolham todo pedaço de lenha que encontrarem, teremos que aproveitar até os gravetos.
Uma semana depois, ainda não satisfeito, ligou para o Serviço Meteorológico outra vez:
- Vocês têm certeza de que teremos um inverno tão rigoroso assim?
– Sim, responde o meteorologista de plantão. Este ano teremos um frio muito intenso.
– Como vocês têm tanta certeza assim?
- É que este ano os índios estão recolhendo lenha pra cacete..."

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Violadores da democracia

Um delegado federal que se arvora de censor da liberdade de imprensa no país ao coagir repórteres da revista Veja, chegando a exigir deles a renúncia ao direito constitucional da preservação de fontes de informação. Um governador reeleito que se julga imune a ponto de nomear a seu bel-prazer a imprensa boa (a que lhe convém) e a má. Um presidente de partido e coordenador da campanha de Lula à reeleição que faz aflorar sua arrogância ao instar a imprensa a uma auto-reflexão, inclusive com a publicação de um desmentido formal a respeito da existência do Mensalão. Militantes leões-de-chácara que agridem jornalistas por eles considerados de oposição na preparação de uma entrevista coletiva do presidente recém-reeleito. O recurso constante, hoje como ontem, à Lei de Imprensa para cercear a liberdade de informação e expressão por parte de profissionais e órgãos de comunicação. O ressurgimento da malograda tentativa de instalar o Conselho Federal de Jornalismo, agora na forma de uma pretensa democratização dos meios de comunicação com a edição de uma lei geral para a mídia eletrônica (rádio e TV) que favoreça a participação comunitária e aumente o 'controle social' do conteúdo, como está previsto no programa de governo do presidente reeleito.
A escalada de atentados contra a liberdade de informação e opinião assume uma dimensão alarmante, nestes poucos dias que nos separam da votação do último domingo. No clima de exacerbação do furor censório de apaniguados do poder reconduzido pelas urnas, alguns jornalistas conhecidos deixam a máscara cair, não só assumindo sua condição de simpatizantes como ainda cobrando do governo providências contra o que, a seu ver, constitui um modo panfletário de distorcer os fatos noticiados. E as entidades classistas, com a Federação Nacional dos Jornalistas, Fenaj, à frente e os sindicatos atrás, ocupadas pela CUT e infestadas de petistas, calam-se, coniventes com o descalabro. Não fossem a OAB, a entidade dos advogados, e a ANJ, dos donos de jornal, não se ouviria hoje uma voz em defesa dos profissionais do ramo visados pelos agentes e surfistas desse tsunami nefasto, que querem arrasar não um reduto corporativista, mas sim um dos pilares principais da democracia no Brasil.
O direito à pluralidade de informações é, com certeza, a maior das conquistas obtidas pela cidadania com a redemocratização do país. Quando defendem a liberdade de imprensa, os verdadeiros democratas o fazem em nome do interesse maior da sociedade, jamais como paus-mandados das oligarquias que ainda detêm a posse de parte dos órgãos de comunicação no Brasil. Além do mais, a ingerência estatal arquitetada nesse caso está claramente a serviço de um projeto de poder, e não de alguma real necessidade de aumentar a massa de informações do povo mais humilde e iletrado.
Os quase 60 milhões de votos dados a Lula no último domingo expressaram uma legítima prática democrática. Por isso mesmo, não lhe conferiram, nem a ele e nem muito menos aos quadrilheiros de plantão que atuam à sua sombra e foram identificados, senão pela opinião pública, pelo próprio procurador-geral da República, poderes para tramar o estupro de uma conquista tão cara à cidadania. É preciso enxergar o que está de fato por trás dos atentados à liberdade de imprensa para não servir de massa de manobra e inocente útil aos violadores da democracia.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Onde estamos?

Se há algo insuportavelmente provinciano e atrasado em política, esse algo é com certeza o comportamento vil de políticos, militantes e simpatizantes que agem como se a vitória nas urnas lhes desse um salvo-conduto para pisar em adversários, declarados ou supostos. Não se trata apenas de fazer declarações sem um mínimo de comedimento. Estas, até se perdoam como produtos do calor da hora. Mas trata-se também, o que é grave, de tentar intimidar as pessoas, com o uso do aparelho ou dos aparatos governamentais. Dois exemplos desse tipo de comportamento foram dados, um pelo governador reeleito do Paraná, Roberto Requião, na segunda-feira, e outro por um delegado da Polícia Federal, ontem à tarde. E as vítimas, em ambos os casos, foram jornalistas.
Requião transformou uma entrevista coletiva em exibição mesquinha de revanchismo. Apoiado por uma claque de políticos e militantes, que vaiavam os jornalistas por perguntas por eles consideradas impertinentes, o governador peemedebista atacou parte da imprensa de seu estado, incluindo alguns jornalistas citados nominalmente por ele, pelo fato de ter quase perdido a eleição para o adversário, Osmar Dias, do PDT. Depois de algumas respostas irônicas ou de ignorar as perguntas formuladas, encerrou de modo abrupto e grosseiro a coletiva, quando a repórter Mari Tortato, da Folha de S. Paulo, lhe dirigia uma segunda indagação. De acordo com o site Comunique-se, interrompeu-a dizendo que ela já falara. E, ao ouvir da repórter que estava autorizada pela assessoria do governador, respondeu que então 'desautorizava' a permissão dada, acabando em seguida com a coletiva.
O delegado da Polícia Federal, de nome Moysés Eduardo Ferreira, agiu ainda pior em relação a jornalistas da revista Veja. Cinco deles foram intimados pela PF a depor, a pretexto de prestar esclarecimentos sobre uma reportagem publicada na semana retrasada, sob o título Operação Abafa, e três – Júlia Duailibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro - compareceram às dependências da força em São Paulo, na tarde de ontem. Para surpresa deles, o delegado os inquiriu como se fossem acusados, e não testemunhas. No melhor estilo DOI-Codi, praticado nas masmorras da ditadura, o delegado pressionou os jornalistas a revelar suas fontes, quis saber da orientação política do editor responsável pela reportagem, lançou mão de ameaças e ainda tentou distorcer declarações dadas ao ditar o texto para o escrivão, no que foi impedido pela representante do Ministério Público presente, Elizabeth Kobayashi. Por exemplo, segundo o site da revista, depois de indagar a Júlia Duailibi os motivos de ela ter escrito 'essa falácia' e de ouvir como resposta um questionamento sobre o sentido do depoimento, uma vez que ele já chegara a tal conclusão antecipada, Ferreira quis atribuir à repórter o termo que ele empregara, no depoimento ditado.
Como se não bastasse, ainda manteve retido durante horas o repórter Marcelo Carneiro, a ponto de a direção da revista ter de pedir a ajuda do senador Tasso Jereissati, presidente do PSDB, para interceder junto ao ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, a quem se subordina a PF, pela liberação do profissional.
Cabe a pergunta: onde estamos? Quando o representante de uma força policial federal exorbita de tal maneira de suas funções, agindo como um gorila censor e árbitro autonomeado da liberdade de imprensa, e o governo nada faz para coibir o abuso, somos obrigados a concluir que vivemos não numa democracia, mas numa republiqueta de bananas indigna de qualquer respeito.

domingo, 29 de outubro de 2006

A vitória do símbolo

Não há como explicar a folgada reeleição de Lula pela ótica da moralidade, do programa de governo ou da ideologia. Erraram, pois, todos os que aconselharam Geraldo Alckmin a fazer uma coisa ou outra. Sugeriram-lhe bater duro nos escândalos, e ele bateu. Recomendaram-lhe acentuar as diferenças na visão de governo, e ele acentuou. Alertaram que era perigoso deixar o adversário posar de pai dos pobres e ele, além de prometer manter e ampliar o Bolsa Família, deixou-se filmar comendo a 1 real o almoço nos restaurantes do programa Bom Prato, criados pelo governo tucano em São Paulo, e abraçando gente humilde por onde passava.
Os conselheiros de Alckmin falharam porque ele enfrentava não um adversário comum, mas sim um símbolo, uma espécie de super-herói da mobilidade social brasileira, o operário gente como a gente que chegou lá em cima. Qualquer outro como Alckmin, cara de classe média, diploma universitário, mulher bonita, filha com emprego em loja chique e ainda com o defeito de ser conhecido praticamente só dentro do estado de São Paulo como político, perderia hoje para o ex-retirante nordestino, vendedor de amendoins quando moleque, ex-torneiro mecânico que deixou um dedo da mão esquerda na fábrica, corintiano, cachaceiro, iletrado, marido dedicado de uma ex-viúva cujos filhos abrigou, além de ter com ela outros, fiel aos ex-companheiros operários e ainda por cima um presidente que estendeu o Bolsa Família a cerca de 12 milhões de famílias. Sem essa identificação da persona de seu adversário com a multidão de humilhados e ofendidos que habita o país, Alckmin jamais poderia ser tão convincente quanto ele no recém-assumido papel de outro pai dos pobres. Mais: nascido no interior de São Paulo, tornou-se refém da onda antipaulista deflagrada no segundo turno para favorecer o nordestino Lula – uma falácia, porque o presidente mantém residência fixa em São Paulo há quase tanto tempo quanto Alckmin tem de vida.
Os números da eleição em segundo turno mostram também o peso dos votos ressentidos ou envergonhados, os primeiros, vindos das camadas humildes, e os segundos, da classe média politicamente correta. Eleger o candidato gente como a gente, e não o outro, é uma forma de os oprimidos pela miséria se vingarem das madames e seus maridos de nariz empinado que gastam num mês o que seus empregados às vezes levam uma vida para ganhar. Já para aquela parcela da classe média que no estádio de futebol vai para a arquibancada podendo pagar por uma cadeira numerada só para ser solidária com as massas, eleger esse mesmo candidato é uma maneira de aliviar a vergonha que sentem como participantes ativos de um sistema de acumulação de riquezas que a cada dia aprofunda o fosso entre um pequeno número de privilegiados e uma grande horda de deserdados. Ao jogar os pobres contra os ricos e o Norte-Nordeste contra São Paulo, portanto, o comando de campanha do presidente acertou em cheio, no sentido de exacerbar os ânimos sociais e regionalistas e assim capturar votos antes dados a Alckmin.
Por isso, Lula teve mais votos do que no primeiro turno e seu adversário, menos. O presidente reeleito ampliou sua vantagem nos estados em que vencera no dia 1.o e recuperou grande parte de terreno nos quais perdera. Por exemplo, em Minas Gerais, onde vencera por 1 milhão de votos no primeiro turno, agora ganhou por 3,2 milhões. E em São Paulo, onde perdera por 3,8 milhões de votos, agora reduziu essa diferença para 1 milhão.
A falta de escrúpulos costuma encontrar terreno fértil na política. Lula e seus aloprados, que na verdade são é muito espertos, se deram bem com o expediente condenável de jogar uma parte do país contra outra para alcançar seu objetivo. Mais pudica, a campanha de Alckmin foi penalizada, e até por acreditar demais no discurso a favor da ética. Para quem vota com ressentimento ou vergonha pela má consciência, denúncias de corrupção não passam de café pequeno.

sábado, 28 de outubro de 2006

Febeapá na Globo

Este blogueiro desligou a TV antes de acabar o primeiro bloco do último e mais aguardado dos debates televisivos entre os dois candidatos presidenciais, realizado na noite desta sexta-feira pela Rede Globo. Ele não suportou o conjunto de elementos que, a seu ver, transformou esse evento tão valorizado previamente num legítimo exemplar do festival de besteiras que assola o país, o febeapá tão bem definido por Stanislaw Ponte Preta. A repetitividade das perguntas e respostas, assim como da postura adotada pelos candidatos, foi o elemento principal quanto ao conteúdo, a julgar pelo primeiro bloco. Mas o que tornou o espetáculo insuportável foi o fiasco de uma idéia, aprovada por não se sabe quem dentro da Globo, de fazer do debate um programa de auditório, como se Lula e Geraldo Alckmin fossem aprendizes do Faustão, e não aspirantes ao cargo mais alto da República. Para completar a impressão de bagunça, novamente ninguém se preocupou em tornar visível para os debatedores um cronômetro. Além de o tempo dado para as perguntas e as réplicas e tréplicas ser insuficiente – 40 segundos e 1 minuto, respectivamente -, a falta desse cronômetro visível levava o mediador William Bonner a todo momento interromper ao meio o raciocínio dos candidatos, que como qualquer pessoa normal não têm um relógio dentro de suas cabeças.
A seleção da platéia, então, foi nada menos que ridícula. Foram levadas ao estúdio 40 pessoas entre o eleitorado indeciso, em trabalho feito em conjunto entre a rede de TV e o Ibope, e algumas delas sorteadas para dirigir perguntas aos candidatos. Estes, para cumprir o combinado com a produção do programa, passaram então a falar só para a pessoa perguntadora, em pé na bancada reservada à pequena platéia, e não para o conjunto dos telespectadores. Tentavam, como é natural, ligar o assunto com outros que gostariam de comentar, e com isso o inquiridor sorteado ficava sem a sua resposta. Para piorar, lá vinha o mediador interromper o raciocínio dos candidatos por estouro de tempo. Difícil imaginar algo mais atroz para se assistir na telinha.
De mais a mais, se a Globo julga brilhante a idéia de falar só para os indecisos, que não passam de 5% do eleitorado a esta altura da campanha, ela que é a líder disparada em audiência no país, isso é um caso para exame de sanidade mental. E, convenhamos, eleitor que até agora, restando pouco mais de 24 horas para o acionamento das urnas eletrônicas, ainda não decidiu em quem vai votar, não merece o menor respeito. No seu caso, recomenda-se substituir o divã do analista pelo banco de madeira da escola básica.
É lamentável que se transforme um evento de inegável importância institucional num mero programa de auditório de TV, pela sanha da Globo por audiência. Além disso, fazer tantos debates em tão pouco tempo é contraproducente. A repetição se torna inevitável, e o que era para ser respeitado vira motivo de chacota.

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Preparem o bolso

Como diria Drummond, e agora, José? No dia 28 próximo, véspera da eleição presidencial em segundo turno por aqui, vence o prazo dado por Evo Morales para que a Petrobrás ou assine um novo contrato, com cláusulas leoninas como o cancelamento do acordo mediante simples aviso prévio de 30 dias dado pelo governo, ou se retire da Bolívia. Assim mesmo, com uma mão na frente e outra atrás, sem direito a nada depois de ter investido 1,5 bilhão de dólares no país. Escusado dizer que a negociação simultânea sobre as condições de fornecimento do gás natural ao Brasil, por meio do extenso gasoduto também construído com dinheiro brasileiro, obviamente será endurecida, com os bolivianos não recuando um milímetro do aumento de preços pretendido e que está sendo imposto em desrespeito a um contrato em plena vigência.
Para reforçar tal convicção, a Bolívia assinou na semana passada com a Argentina um acordo de 20 anos, pelo qual se compromete a quadruplicar o fornecimento de gás ao país vizinho, dos atuais 7,7 milhões de m3/dia para 27,7 milhões de m3, elevando-o já em 2008 para 16 milhões de m3 com o gasoduto a ser construído pela Enarsa, estatal argentina. Só com esse aumento já estará praticamente esgotada a atual capacidade produtiva boliviana, como nota o jornal O Estado de S. Paulo em editorial publicado hoje, o que põe sob sério risco o suprimento do gás ao Brasil.
É nisso que dá uma política externa terceiro-mundista, desavergonhadamente populista, por meio da qual o governo Lula acha por bem defender mais os interesses de países estrangeiros do que os nossos, chegando ao desplante de elogiar a demonstração de soberania do governo Morales. Preparemos, portanto, o bolso. Além dos alimentos, já em alta por conta da frustração da safra, também o gás natural vai subir, logo após a reeleição anunciada de Luiz Inácio Lula da Silva.

Nossas crianças de nome estrangeiro

"Reparem nos nomes das pessoas. A cada nova investida da mídia, uma nova geração de brasileiros se desgarra da história para flutuar, como asteróides errantes, no mundo das identidades imaginárias: chamam-se "Michael" ou "Diane", quase que invariavelmente grafados Máiquel, ou Máicom, e Daiane. Inútil explicar isto pelo mero senso de macaquice. O fenômeno reflete uma doença mais profunda: a completa vulnerabilidade de um povo desprovido do senso de retaguarda histórica.
Não estou criticando os pais dessas crianças. O que os motiva é um impulso elevado e nobre. Dar nome a uma criança é libertá-la da escravidão natural e protegê-la sob o manto da tradição e da cultura. É subtraí-la da insignificância empírica para elevar sua existência a um sentido universal. O nome de um anjo, Miguel, Gabriel, faz de seu nascimento uma mensagem de Deus. O nome de um santo, João, Pedro, Teresa, Inês, alista-a entre os beneficiários de acontecimentos miraculosos. Os de um animal nobre, de um astro do céu - Leão, Hélio e Eliana - associam-na ao simbolismo espiritual das coisas da natureza. Ao chamar suas crianças de Máiquel e Daiane, o brasileiro pobre expressa o protesto da sua alma contra a sociedade que as condenou a uma existência irrisória e cinzenta, e busca associá-las à corrente dos prestígios que representa a vida realizada, plena, feliz.
Mas, em primeiro lugar, Máiquel e Daiane são falsos sentidos universais. Não são nomes de gente. São griffes, copiadas errado de uma língua desconhecida, falada num país distante do qual essas crianças estão ainda mais excluídas do que de uma possível vida feliz na sua terra natal. Para augurar uma vida feliz a essas crianças seria preciso chamá-las Miguel e Diana, nomes de forças sutis sem referência geopolítica. A modulação norte-americana exorcisa o arcanjo e a deusa, não deixando em seu lugar senão os rótulos que farão de duas vidas humanas os reflexos anônimos de duas imagens efêmeras.
Há nesse hábito brasileiro um fundo de autocondenação, um evidente sintoma depressivo. Chamar a uma criança Máiquel ou Daiana é declarar que ela só seria feliz se tivesse nascido nos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo seu próprio nome, com grafia errada, prova que não nasceu. Ela está, portanto, condenada ao infortúnio.
Esses nomes não são bons augúrios, como os do arcanjo São Miguel e da deusa Diana: são pragas sinistras lançadas sobre inocentes. Precisamente por carregar nome grotescos essas crianças terão dificuldade de ascender socialmente no seu próprio país. Em segundo lugar, o personagem cujo nome se copia é, em si mesmo, um nada, um fogo-fátuo, destinado a desaparecer sob a maré de novas imagens da mídia. Aos quarenta anos, quem carregue seu nome será um anacronismo vivo, como o é hoje quem se chame Neil, por conta de Neil Sedaka, ou Pat, em homenagem a Pat Boone.
As intenções dos pais terão se desvanecido junto com essas glórias de quinze minutos. Os nomes dessas crianças serão as marcas aviltantes de uma irrecorrível condenação à insignificância."
(Olavo de Carvalho, filósofo e jornalista, em nota de observação ao artigo de sua autoria 'A origem da burrice nacional', publicada na revista Bravo!, edição de dez./1999-jan./2000)

domingo, 22 de outubro de 2006

Novo ídolo?

Ah, como é bom ver de novo o Brasil no alto do pódio da Fórmula 1, sobretudo em Interlagos! Como emociona ver um piloto, à moda de Ayrton Senna, fazer a volta da vitória com uma mão no volante e a bandeira brasileira na outra! Com Felipe Massa neste domingo de sol em São Paulo pudemos sentir outra vez o peito estufado por um legítimo orgulho nacionalista, algo que muito poucas outras atividades além do esporte conseguem propiciar.
Será Massa um novo fenômeno brasileiro na categoria mais nobre do automobilismo, na qual já tivemos três campeões mundiais, entre eles Senna, nosso esportista mais amado? Só o tempo dirá. E Massa pode esperar, afinal só tem 25 anos. (Jackie Stewart, o inglês tricampeão mundial, saiu-se uma vez com uma piada simpática a respeito da habilidade dos brasileiros nas pistas: "Perguntam-me por que são tão bons", disse ele. "Respondo que talvez seja pela água que tomam.")
O certo é que Massa, junto com o espanhol Fernando Alonso, sagrado hoje bicampeão mundial, e o inglês Jenson Button, com os quais subiu ao pódio, e mais o finlandês Kimi Raikkonen, é um dos principais candidatos a herdar a coroa do grande campeão Michael Schumacher no reino da Fórmula 1. O alemão sete vezes campeão mundial, feito não obtido por nenhum outro corredor na história, despediu-se da carreira hoje com um show de pilotagem em Interlagos.
A corrida deste domingo foi, aliás, perfeita para marcar a redenção de Schumacher, ou Schumi para os íntimos, perante a torcida brasileira. Por muito tempo torcemos contra ele, temerosos de que pudesse ofuscar a memória de Senna. Agora que se aposenta rendemos-lhe homenagens, por seus muitos méritos como piloto, por gostar de futebol como nós, por ser um boa-praça, filantropo como Senna, e ainda por ser amigo do nosso possível novo ídolo, Felipe Massa.

Cheiro de queimado

Digam o que disserem os membros da tropa de choque do presidente Lula escalados para protegê-lo das labaredas do caso nesta reta final de campanha, existe agora uma prova irrefutável do envolvimento do Palácio do Planalto no escândalo do dossiê. Trata-se da confirmação, dada pelo próprio autor dos telefonemas, de que no mesmo dia da prisão dos dois petistas em São Paulo com 1,75 milhão de reais em cédulas de real e dólar, reunidos para a compra dos documentos falsos, a chefia do Gabinete da Presidência e o responsável pelo setor de inteligência do comitê do candidato presidencial andaram trocando informações. Gilberto Carvalho, o chefe do Gabinete, declarou candidamente, na sexta-feira passada, que ligou duas vezes para Jorge Lorenzetti, o encarregado da inteligência, no dia 15 de setembro passado, a primeira logo depois das 10 horas da manhã e a segunda logo depois das 18 horas. E ontem reforçou seu testemunho, dizendo para a repórter Vera Rosa, do jornal O Estado de S. Paulo, que seus telefonemas tiveram por fim cumprir "um dever de Estado, de buscar informações para o presidente Lula frente a uma notícia imprecisa que havia chegado". Não se acusa Carvalho de fugir de seus deveres funcionais. O problema de sua versão é que, àquela altura, ninguém sabia – nem a Polícia Federal, que tomava os primeiros depoimentos de Gedimar Passos e Valdebran Padilha, os dois petistas presos com o dinheiro – que Lorenzetti era, como se evidenciou depois, o mentor da compra do dossiê. Por que o secretário particular do presidente ligou justamente para ele em busca de pormenores, e não para qualquer outro membro graduado do comitê, é a pergunta a ser respondida.
A PF constatou também que nas proximidades do estouro do caso Lorenzetti entrou em contato com outro peixe graúdo do PT, o ex-ministro José Dirceu. Embora tenha sido cassado e apeado do governo, Dirceu continua atuante junto à coordenação da campanha de Lula. Mas como o teor de sua conversa com Lorenzetti é desconhecido, por não ter havido quebra de sigilo, e a data da ligação telefônica é imprecisa, não há como comprovar seu envolvimento no chamado dossiêgate.
Ainda ontem, em evento político de campanha nomeado 'Ato Nordestino' e realizado em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, os senadores Aloizio Mercadante e Eduardo Suplicy, do PT, e o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, do PC do B, entre outros, trataram de inocentar o secretário particular de Lula. Segundo Mercadante, o fato de Carvalho ter ligado para Lorenzetti no dia da prisão de Gedimar e Valdebran "não caracteriza envolvimento". Disse mais o candidato derrotado ao governo de São Paulo, de acordo com a Folha Online: "É evidente que ele não participou. O papel dele como chefe de gabinete é informar (o presidente) de fatos que acontecem". Suplicy, por sua vez, considerou "satisfatórios" os esclarecimentos dados por Carvalho. E Rebelo qualificou como "políticos" os desdobramentos ocorridos a partir da investigação policial.
Se não foram três comentários idiotas, foram um escárnio à opinião pública. O envolvimento do secretário particular de Lula no escândalo do dossiê está mais do que caracterizado com seus dois telefonemas no dia da prisão dos correligionários petistas. Seus esclarecimentos não têm nada de satisfatórios. E quanto aos desdobramentos, compete agora ao TSE decidir se a participação direta do Planalto no caso configura ou não um crime eleitoral punível com a impugnação da candidatura Lula.

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Troca de barco

A mais recente pesquisa do Ibope, divulgada hoje à noite pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, indica que o presidente-candidato Lula segue aumentando a dianteira na corrida pelos votos do próximo dia 29. Segundo o instituto, cuja sondagem se realizou nos dias 18 e 19, portanto antes do debate televisivo na rede SBT, ocorrido na noite de quinta-feira, o presidente tem agora 57% dos votos, 21 pontos percentuais à frente de Geraldo Alckmin (36%). Votos brancos e nulos são 3% e os indecisos somam 4%.
Para quem continua firme com o candidato oposicionista, a má notícia é que a nova pesquisa mostra uma aceleração na tendência de migração de votos verificada anteriormente. O eleitorado de Lula cresceu 5 pontos percentuais em relação à sondagem feita apenas uma semana antes, no dia 12, enquanto o de Alckmin encolheu 4 pontos. E como a massa dos que votam branco ou nulo ou estão indecisos diminuiu somente 1 ponto, no primeiro segmento, conclui-se que nesta etapa final da campanha para o segundo turno levas maiores de eleitores abandonam o barco de Alckmin para pular no de Lula, de acordo com a surrada ótica de 'não perder o voto'.
A pouco mais de uma semana do veredicto das urnas, tais números não deixam margem a dúvida quanto ao resultado final das eleições. Mas se estas terminam no dia 29, como lembra Reinaldo Azevedo em seu blog, a política continua. E uma fatura pesada será cobrada do lulo-petismo logo após a festa da vitória, porque uma parte do mar de lama levantado a respeito das atividades do governo e de seu partido já está sob exame na esfera judicial.
Sina triste essa, do Brasil. Em lugar de ter suas esperanças renovadas pela posse do presidente reeleito, o país assistirá, do primeiro ao, provavelmente, último dia do mandato dele, a uma sucessão de sessões parlamentares e de cenas de tribunal destinadas à apuração e ao julgamento de malfeitorias velhas e novas imputadas ao círculo íntimo do poder. Até no Haiti o povo encontra motivos para orgulhar-se mais de sua democracia.

Ironias sem nexo

Nada como a continuidade para aumentar a abrangência das discussões. O debate de ontem à noite entre os dois candidatos presidenciais, na rede SBT, versou mais sobre programas de governo e menos sobre corrupção, graças sobretudo ao oposicionista Geraldo Alckmin, que enunciou com segurança e firmeza uma série de ações que pretende desenvolver, se eleito, nas áreas econômica e social, enquanto seu adversário político se limitava a ler uma enxurrada de números sem maiores explicações. O ex-governador paulista abandonou também a posição defensiva na questão das privatizações, ao afirmar que elas ajudaram a melhorar a situação das empresas vendidas pelo governo e de setores como a telefonia. E adicionou uma pitada de veneno dizendo que não fará como os petistas, que privatizaram a máquina pública para si próprios.
A ex-prefeita paulistana Marta Suplicy terá de encontrar agora um outro argumento para criticar Alckmin, a quem chamou, logo após o encerramento do debate televisivo anterior, na rede Band, de 'candidato de plástico' moldado por assessores do PSDB, já que, a seu ver, ele nada mais fizera além de citar de forma monocórdica denúncias de corrupção. Tratava-se de uma aleivosia, porque também naquele encontro Alckmin foi mais explícito e convincente do que seu oponente em questões programáticas e ontem quem se repetiu a todo momento, como se tivesse uma cartilha decorada, foi Lula. Este, aliás, precisou a certa altura recolher o rabo entre as pernas no debate de ontem, depois de usar a expressão 'samba de uma nota só', derivada do tom supostamente monocórdico do candidato tucano, para diminuir a resposta dada por ele no quesito corrupção, formulado pela produção do programa de TV. "Não é apenas uma nota, mas um milhão e setecentos e cinqüenta mil", devolveu Alckmin, numa referência à montanha de cédulas de dinheiro apreendidas com os petistas presos no caso do dossiê Vedoin.
Outras ironias usadas por Lula contra o oponente também soaram suspeitas. Sua citação do PCC como principal beneficiário da alegada falta de segurança no estado de São Paulo, durante a gestão Alckmin, por exemplo, ficou incompleta sem a lembrança de que a organização criminosa, além de jogar coquetéis Molotov nos ônibus e metralhar portas bancárias, faz proselitismo político em favor do PT. E na questão dos juros de quase 50% no governo Fernando Henrique Cardoso, contra os atuais 13,75% da taxa Selic (aqui Lula escorregou mais uma vez ao tentar dar um número de cabeça: falou em 6,85%), faltou dizer que seu antecessor tentava evitar que as reservas cambiais brasileiras virassem pó, no auge de uma crise financeira de dimensão mundial.
Lula não se deu bem ainda quando tentou valorizar a pretensa distribuição de renda promovida por seu governo com a lembrança de que o Brasil já chegou a crescer 10% ao ano, mas deixando os pobres mais pobres. Esse cenário corresponde ao período de 1968 a 1973, o mais tenebroso da repressão às liberdades políticas comandada pela ditadura militar e, paradoxalmente, o de maior crescimento continuado do PIB, em décadas. O então chamado czar da economia, Delfim Netto, teve a sorte de comandar a pasta da Fazenda numa conjuntura internacional extremamente favorável, com oferta de dinheiro abundante e o barril do petróleo custando apenas 2,50 dólares, e ainda por cima contando com a casa arrumada pelos antecessores, os ministros do Planejamento e da Fazenda do governo Castelo Branco, respectivamente Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões. Mas se Delfim, mesmo fazendo a economia crescer perto de 10% ao ano, pouco se lixou para o destino dos miseráveis do país, ele agora é cabo eleitoral de Lula, acolhido com todas as honras tanto pelo presidente-candidato quanto pelo PT. Se isso não representa uma contradição entre discurso e prática, então não se sabe o que mais o mesmo elástico pode prender.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

O aviso dos números

Circulam por e-mail duas continhas de somar e subtrair, a propósito da eleição presidencial do próximo dia 29. "Se você quiser fazer o Brasil crescer", diz a mensagem que acompanha as contas, "some, não diminua".
A coincidência é realmente extraordinária. A eleição é dia 29/10/06? Pois some 29+10+6 e o resultado será 45, o número de Geraldo Alckmin. Já a subtração 29–10–6 dá 13, o número de Lula.
Durma-se com uma numerologia dessas.

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Coerência e burrice

Muitas pessoas, incluídos anônimos, intelectuais e artistas, passam a vida aferrados ao princípio da coerência. Abandonar um ideal defendido com ardor e desprendimento por longo tempo, nem pensar. Além disso, o que diriam os amigos e admiradores?
O ex-ministro da ditadura Jarbas Passarinho tem assim razão ao afirmar, em seu artigo periódico publicado no jornal O Estado de S. Paulo de hoje, que a esquerda pode ter várias faces, mas mesmo dividida não vota em quem não pertença à grei. Como exemplos desse comportamento cita Chico Buarque, Frei Betto e o vice de Heloísa Helena na candidatura à Presidência, o economista autodidata César Benjamin. E no mesmo jornal uma leitora, Ruth de Souza Lima e Hellmeister, na seção Fórum dos Leitores, lamenta a decisão do PSOL de tender à adesão a Lula, depois de toda a violenta campanha contra ele desfechada pela senadora alagoana no primeiro turno.
Quer dizer, a coerência defendida por esse pessoal obedece a graduações. Determinados princípios podem ser deixados de lado, menos o principal, a coerência ideológica. À combativa senadora só faltou dizer, com todas as letras, que além de corruptos e ladrões de toda espécie o PT abriga alguns assassinos. Em mais de um momento deixou essa insinuação no ar, quando nem os líderes dos partidos da oposição ousaram a tanto, mesmo nos acalorados debates em torno dos casos paulistas de Celso Daniel, em Santo André, e Toninho, em Campinas. Vale mencionar, aqui, a recente denúncia da revista Veja, de que o petista Gedimar Passos, preso com parte do dinheiro levantado para pagar o dossiê calunioso do chefão dos sanguessugas, Luiz Antônio Vedoin, dono da empresa Planam, contra políticos tucanos, só mudou seu depoimento anterior à Polícia Federal, passando a inocentar o guarda-costas de Lula, Freud Godoy, depois de receber nas dependências da própria força, na calada da noite e na presença do delegado autor da permissão para a entrada, uma visita irregular de Godoy, acompanhado de outro guarda-costas palaciano, José Carlos Espinoza. É impossível saber o que Godoy e seu colega falaram para Gedimar, porque nem eles nem o delegado envolvido são tontos a ponto de dar detalhes para a imprensa. Mas pouca coisa não deve ter sido.
Quando a coerência se confunde com a cegueira, no entanto, o que antes poderia ser visto como um traço de honestidade passa a sê-lo como sinônimo de burrice. É clássica a imagem do homem que monta uma idéia pela vida toda, pela simbiose com a cavalgadura.
A Chico Buarque, um gênio em seu ofício, autor tão importante para a nossa música popular quanto Noel Rosa, certamente não faltam luzes, assim como para o escritor Luis Fernando Verissimo ou para o ator Paulo Betti. Mesmo assim, os três, entre milhões de outros, votam em Lula, Chico por não se comover com o discurso anticorrupção do PFL, Verissimo por manter a visão de ser o neoliberalismo um monopólio da direita e Betti por entender que política se faz pondo a mão naquilo que começa com a letra 'm'. As justificativas dadas por eles para seus votos sintetizam o pensamento da parcela mais esclarecida da população que pretende assegurar mais quatro anos de mandato para o chefe da nação mais enlameado da história da República. As falcatruas cometidas, apesar da dimensão monstruosa, são perdoadas ou, pior, coonestadas, com o argumento de não existir uma prática política limpa. E quanto a programas de governo essa camada de eleitores pró-Lula enxerga progressismo na distribuição de simples esmolas. O grave nesse comportamento é o fato de a miopia voluntária cultivada em nome da ideologia traduzir-se em prejuízos alheios, pelo retardamento dos avanços do país.
Com a adesão ao capitalismo de todos os bastiões do socialismo desde a queda do muro de Berlim, em 1989, inclusive da Rússia, de seus antigos satélites e até da Albânia, com exceção de tiranias como Cuba e Coréia do Norte, tornou-se algo démodé qualificar atitudes de esquerda como progressistas. O mundo mostrou que não havia como distribuir riquezas antes de acumulá-las pela via do conservadorismo econômico, numa confirmação da tese da partilha do bolo somente após o crescimento deste. A inversão de etapas, como ficou provado repetidas vezes, fazia perdurar e ainda aprofundar o atraso do país, ao invés de abreviá-lo.
No caso brasileiro, o governo atual poderia ser aceito se fosse apenas produto de um equívoco ideológico. Mas, longe disso, ele constitui uma fraude porque, para começar, seu Bolsa-Família, uma junção de programas criados pelo presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso, diante da impraticabilidade do Fome Zero de Lula, assumiu um caráter meramente eleitoreiro. Em lugar de ensinar a pescar, limita-se a dar o peixe. Que futuro tal prática assistencialista de cunho demagógico pode assegurar para o país? Pois, tirando o assistencialismo, o que o atual governo fez foi manter a política econômica herdada do antecessor, acentuando a ortodoxia com o aumento dos juros reais. Se o governo FHC foi neoliberal – como quer Verissimo, a despeito de todas as reformas modernizantes feitas na época, incluindo as privatizações anatematizadas pelo PT -, este governo Lula o foi em dobro. A prova é que nunca os bancos lucraram tanto, enquanto o país deixa de aproveitar a conjuntura internacional favorável para crescer mais.
O discurso de esquerda revigorado para o segundo turno das eleições, por parte dos detentores do poder, não passa portanto de um engodo. Só não enxerga essa verdade aquele que renuncia às próprias luzes para adotar as de sua cavalgadura.