Nos idos de 70, naquele imenso corredor que separa os prédios da Câmara e do Senado, lá vinha o doutor Tancredo, com um séquito de políticos, repórteres e seguranças. Quando passamos pelo grupo, meu colega, o jornalista Carlos Alberto Sardenberg, então correspondente do Jornal do Brasil em Brasília escalado para cobrir assuntos do Congresso, abordou Tancredo. Após trocar algumas palavras com ele, apresentou-me como jornalista de economia em São Paulo. A raposa mineira nunca me tinha visto mais gordo ou mais magro. Mas imediatamente me abraçou como a um velho conhecido e cochichou no meu ouvido, como quem conta um segredo: "Estou muito precisado de uns conselhos do amigo".
É evidente que Tancredo não precisava de conselhos de um zé-ninguém, até porque tinha muito mais experiência de vida e de política do que este modesto escriba. Àquela altura, era deputado federal há várias legislaturas e já fora ministro da Justiça de Getúlio Vargas, presidente do Banco do Brasil no governo Juscelino Kubitschek e primeiro-ministro do curto parlamentarismo brasileiro que ele mesmo sugeriu a Jango Goulart para evitar o golpe militar. Mas Tancredo Neves era desses políticos, hoje cada vez mais raros, com um dom inato para seduzir. Dizia aos outros o que gostariam de ouvir, mesmo pecando pelo exagero.
Essa sua habilidade pode explicar por que não foi cassado ou perseguido pelo regime militar, embora sempre lhe fizesse oposição. A lhaneza não significava nele falta de vértebras ou de caráter. Ao contrário, Tancredo marcou sua longa trajetória política com uma rara coerência, sem nunca renunciar a seus ideais. Guardava para a posse como presidente, que não chegou a assinar - seria o primeiro civil no cargo, depois de vinte anos de ditadura militar -, a caneta banhada a ouro recebida de Getúlio.
Hoje, Tancredo, Mário Covas, Ulysses Guimarães e alguns outros, que ensinaram como se deve fazer oposição, devem estar se revirando na cova (no caso de Ulysses, no fundo do mar). O líder do PSDB na Câmara, Jutahy Magalhães Júnior, da Bahia, anunciou ontem sem corar, para o Brasil inteiro, que a maioria de seu partido apóia a eleição do petista Arlindo Chinaglia para presidir a casa. Ou seja, aderiu, sem remorso nem vergonha. Mandou para a cesta de lixo os quase 40 milhões de votos dados a Geraldo Alckmin, de seu partido, nas últimas eleições presidenciais. Nada a estranhar. Jutahy Júnior é o mesmo que no fragor da campanha anunciou apoio ao candidato do Planalto ao governo baiano, Jaques Wagner, indiferente aos estragos que estava causando na imagem do partido e da candidatura Alckmin. E o pior é que o PSDB não conseguiu demovê-lo. Também nada a estranhar. O atual presidente do partido, Tasso Jereissatti, já declarou que apoiará o adesista de carteirinha Ciro Gomes para presidente em 2010. Com uma oposição assim o governo não precisa de situação parlamentar, nem de seu exército de apaniguados e puxa-sacos. Pode-se prever, porém, que se Tancredo, Covas e Ulysses têm assegurado um lugar de honra na história política brasileira, a Jutahy Júnior está reservada a mesma cesta de lixo na qual ele joga a bandeira oposicionista, agora em frangalhos, de seu partido.
Tancredo, de quem Jutahy Júnior, se pudesse voltar ao passado, não teria estofo para engraxar-lhe as botinas, era tão cioso de seu papel como homem público que até para morrer deu um jeito de resistir no hospital até o dia 21 de abril, data de Tiradentes, o mártir da Inconfidência e mineiro de São João del-Rei (hoje Tiradentes) como ele. São Paulo se comoveu com três grandes cortejos fúnebres nas últimas décadas do século passado, a multidão de anônimos a correr em volta do caminhão de bombeiros com o caixão. Em ordem cronológica, o primeiro foi o de Elis Regina, O segundo, de Tancredo. E o terceiro, de Ayrton Senna.
No dia seguinte ao do enterro do corpo de Tancredo, em 1985, Chico Caruso publicou uma charge inesquecível na primeira página do jornal O Globo. Dois anjos levavam pelos braços o falecido em direção ao céu, e Tancredo, já com a devida auréola, sorria para os espectadores em lágrimas aqui em baixo.
Mais articulador do que tribuno, Tancredo não era de arrebatar multidões. Mas recebeu na morte o tributo popular que não teve durante a carreira.
sexta-feira, 12 de janeiro de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário