sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Voz de veludo

Diz a lenda que o cantor Nat King Cole foi descoberto por um bêbado. Inconveniente como costumam ficar muitos outros em estado semelhante, ele teria insistido para que o pianista do show ao vivo no bar de segunda categoria cantasse uma canção. Bêbado, mas bom freguês, teria recebido o apoio do dono do estabelecimento até convencer Nat a cantar – e a espantar a pequena platéia presente com sua técnica vocal. Surgiria ali, para o mundo, um dos três ou quatro maiores cantores americanos da história, junto com Frank Sinatra, Bing Crosby e Ray Charles.
Nascido Nathaniel Adams Coles em 17 de março de 1919 na racista cidade de Montgomery, no Alabama (há dúvidas quanto ao dia, mês e ano porque o próprio Nat chegou a usar cinco diferentes datas de nascimento em documentos oficiais), como segundo dos treze filhos do pastor batista Edward James Coles e de sua mulher, Perlina Adams Coles, sendo que oito desses filhos morreram antes de chegar à idade adulta, vitimados pela miséria, a estréia musical do cantor se deu, ainda criança, como pianista acompanhante do coro da igreja, porque desde os quatro anos recebia da mãe lições diárias ao teclado. Nat e os irmãos sobreviventes puderam, contudo, pelo menos cursar escolas públicas até o nível colegial, já que a família escapara das perseguições racistas sofridas no sul do país mudando-se para o norte de Chicago.
Para desgosto do reverendo Coles, Nat e os irmãos abandonaram os estudos ao meio por conta da música. Todos eles, incluindo os dois que formaram com Nat um trio, sonhavam com uma carreira na área. Mais tarde, já com outros músicos profissionais, o então pianista começou a tornar-se conhecido no país, o que constituía uma proeza num ambiente musical dominado, na época, pelo som das big bands. É que Nat não apenas era um excelente pianista de jazz como ainda marcava seu fraseado com uma noção de ritmo raramente vista, tanto que seu trio não tinha baterista.
Mais do que o bêbado da lenda, parece que foi Maria Ellington, a segunda mulher de Nat, quem o influenciou a lançar-se só como cantor, a partir de fins dos anos 40. Maria era cantora profissional, trabalhou inclusive na banda de Duke Ellington, com quem não tinha parentesco, enquanto Nadine Robinson, a primeira mulher, atuava como dançarina quando Nat a conheceu. O primeiro grande sucesso da carreira solo como vocalista, Nature Boy, de Eden Ahbez, estreou nas paradas de sucesso quando ele e Maria estavam em lua-de-mel em Acapulco, no México, em abril de 1948. Natalie, que há alguns anos reavivou um antigo sucesso do pai, Unforgettable, numa remixagem da gravação original com sua voz em dueto com a de Nat, foi a primeira filha. Depois, o casal adotou uma sobrinha da mulher, tornada órfã, e ainda um menino. Por fim, a prole se completou com duas gêmeas tidas por Maria já em 1961, quatro anos antes de Nat morrer de câncer no pulmão, sem abandonar o hábito de fumar três maços de cigarro por dia.
Na verdade, alguns anos antes do sucesso com Nature Boy, tornada uma canção emblemática nos Estados Unidos do imediato pós-guerra, para a geração rebelde de James Dean e companhia, Nat já cantava à frente de seu King Cole Trio. Como contratado da Capitol, chegou em 1946 ao primeiro lugar na Billboard com (I Love You) For Sentimental Reasons, de Best e Watson, regravada mais tarde até pelos Rolling Stones. Mas a diferença é que, com Nature Boy, ele se fez acompanhar pela primeira vez de uma orquestra completa, a de Frank Devol. E com o segundo mega-sucesso, Mona Lisa, de Livingston e Evans, em 1950, canção ganhadora do Oscar como a melhor do cinema naquele ano, composta para o filme Captain Carey, USA (Missão de Vingança), estrelado por Alan Ladd, o imortal Shane do maior faroeste de todos os tempos, Os Brutos Também Amam, sua carreira solo como cantor se consolidou para sempre.
Não era para menos. Embora, com excesso de modéstia, Nat afirmasse que não gostava da própria voz, que lhe soava umas duas oitavas fora das notas e nasalada em excesso, seus imitadores como Earl Grant não dão nem para o começo, numa comparação com ele. Nenhum deles conseguiu aveludar passagens com tanta propriedade quanto o imitado, e sobretudo conferir majestade a canções que com outra voz poderiam parecer banais. Para não ir longe, se você é anterior à geração da dance music sabe que clássicos da América Latina como Las Mañanitas, Aquellos Ojos Verdes, a Adelita que serviu de hino aos revolucionários de Castro em Cuba e até a brasileiríssima Andorinha Preta tiveram como gravações definitivas aquelas mesmo, cantadas com sotaque em espanhol ou em inglês por Nat King Cole, quando ele esteve por estas paragens.
E as novas gerações podem conferir a veracidade deste texto nos links abaixo, que remetem aos vídeos do site YouTube. Vale ouvir com atenção a leitura que Nat faz do clássico dos clássicos Stardust, de Carmichael e Parish; da mensagem de esperança contida em Smile, que o genial Carlitos compôs para o filme Tempos Modernos, de 1936, e valorizada no vídeo por um delicado desenho japonês; e ainda de When I Fall In Love, de Unforgettable na versão original, Andorinha Preta e Mona Lisa. Infelizmente, apesar do grande acervo reunido no endereço, faltam algumas obras-primas como Pretend, de Douglas, Parman, Lavere e Belloc, e A Blossom Fell, de Barnes, Cornelius e John, que nunca foi lançada em disco no Brasil. Paciência, não se pode querer tudo, afinal. Eis os links:
Stardust
Smile
When I Fall In Love
Unforgettable
Andorinha Preta
Mona Lisa
Por último, uma explicação para este post. Por que falar de Nat King Cole, sem mais nem menos, se não é centenário de nascimento nem cinqüentenário de sua morte, ocorrida em 15 de fevereiro de 1961? Resposta: e precisa haver motivo para falar de um cantor tão maravilhoso como ele?

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