domingo, 31 de dezembro de 2006

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Nas asas da Panair


O Constellation sendo preparado para voar (foto Revista FLAP Internacional)

Um escritor francês casado deixa Paris e vai a Lisboa fazer uma palestra sobre Balzac. Na capital portuguesa tem um caso com a aeromoça, também francesa, que conhece no avião. O caso prossegue na França e acarreta trágicas conseqüências. Esse filme, Um Só Pecado (La Peau Douce), de 1964, dirigido por François Truffaut e interpretado por Jean Desailly (o escritor) e Françoise Dorléac (a aeromoça), foi exibido ontem na TV paga e vale ser lembrado não apenas por suas qualidades e pelo fato de ter no elenco principal a bela irmã de Catherine Deneuve, morta aos 25 anos num acidente de carro em 1967, como também por dois detalhes caros aos brasileiros. Um é que o camareiro do hotel em Lisboa fala em português mesmo ao mostrar as instalações do quarto para o francês, que entende por estar vendo e não só ouvindo, e agradece em sua língua. E o outro, o principal, é o nome da companhia aérea dos vôos de ida e de volta do escritor: Panair do Brasil.
Nestes tempos de sofrimento nos aeroportos com o apagão aéreo no país, causado primeiro por um capricho dos operadores de vôo e depois pelo overbooking praticado pela TAM, os mais antigos devem estar com saudades da Panair. "Descobri que as coisas mudam/e que tudo é pequeno, nas asas da Panair", cantava a insuperável Elis Regina, em Conversando no Bar, de Milton Nascimento e Fernando Brant. "Descobri que minha arma é/o que a memória guarda dos tempos da Panair/(...)A primeira Coca-Cola foi/me lembro bem agora, nas asas da Panair/A maior das maravilhas foi/voando sobre o mundo, nas asas da Panair"
Um símbolo do orgulho nacional em sua época, a Panair fez seu vôo inaugural em 24 de janeiro de 1930, ligando o Rio de Janeiro a Fortaleza. Tinha a bordo apenas convidados, além dos tripulantes. O primeiro vôo com venda de bilhetes se deu no ano seguinte. Nascida como filial da então poderosa Pan American Airlines, que havia incorporado a Nyrba – New York Rio Buenos Aires Lines Inc -, constituída um pouco antes pelo coronel Ralph O'Neil no Brasil, a Panair era no seu início uma companhia de capital 100% americano. A partir de 1942, porém, passou a admitir sócios brasileiros, e no início da década de 1960 já se tornara inteiramente nacional. Começou a operar rotas internacionais em abril de 1941 com os famosos Constellations, de quatro motores a hélice, e levou a bandeira brasileira pintada na fuselagem, na cauda e ao lado da cabina do comandante, a muitos lugares do mundo. Dá para ver bem a bandeira numa cena do filme de Truffaut.
A Panair foi um caso de amor dos brasileiros, em especial dos seus 5 000 funcionários, para com a companhia. Quando a empresa se viu em dificuldades financeiras, no início dos 60, com a inflação, os empregados se cotizaram para ajudá-la, doando 25% dos salários. A Panair anunciava com orgulho ter transportado a seleção brasileira de futebol vitoriosa nas Copas do Mundo de 1958, na Suécia, e de 1962, no Chile.
Mas em 10 de fevereiro de 1965, com uma canetada do brigadeiro Eduardo Gomes, então ministro da Aeronáutica da ditadura militar instalada no ano anterior, a Panair teve cassado o seu registro. Suas rotas internacionais passaram a ser operadas no mesmo dia, sem nenhuma explicação, pela Varig, e as nacionais, pela Cruzeiro do Sul. Por que razão o brigadeiro tomou essa decisão contra a empresa, se ela já era de capital 100% nacional, tanto quanto a Varig ou a Cruzeiro? Não há documento oficial a respeito, somente suspeitas. A maior é que a intervenção se deu porque o presidente e maior acionista da Panair, Celso da Rocha Miranda, era amigo íntimo do ex-presidente Juscelino Kubitscheck, cassado e perseguido pelo regime militar. Quase vinte anos depois, em 1984, o Supremo Tribunal deu ganho de causa aos herdeiros da companhia, ao considerar a falência fraudulenta e condenar a União a ressarcir a Panair. Mas já era muito tarde.
A Varig, que incorporou a Cruzeiro do Sul, a Transbrasil e a Vasp, só para citar as principais companhias da era pós-Panair, ou morreram ou estão moribundas. E se a TAM recorre ao overbooking, não é por maldade. Conclusão: o governo que faz e desfaz no setor aéreo, em nome da reserva de mercado às companhias nacionais, só não consegue o principal, garantir a sobrevivência das empresas. É pena, porque a bandeira na fuselagem não serve apenas para afagar nosso ego. Qualquer um que se tenha reconfortado a bordo de uma aeronave brasileira, depois de algumas semanas em solo estrangeiro, sabe do que estamos falando.

domingo, 24 de dezembro de 2006

Feliz Natal

Mas no dia seguinte, bem cedinho, Scrooge estava em seu escritório. Ah, bem mais cedo que de costume! O importante era ser o primeiro a chegar para surpreender Roberto Cratchit chegando atrasado. Fazia questão disso.
E o conseguiu. Sim senhor! O relógio bateu nove horas. Nada do empregado. Um quarto de hora. Nada ainda. Finalmente apareceu ele, com dezoito minutos e meio de atraso. Scrooge sentara-se com a porta aberta para vê-lo entrar no cubículo.
Roberto abriu a porta e, antes de entrar, colocou o chapéu na mão e o cachecol no braço. Num segundo estava sentado à sua escrivaninha e pôs-se a escrever com ardor, como para compensar o tempo perdido.
- Alô!, rosnou Scrooge com sua voz habitual, que procurava tornar a mais áspera possível. Que é que pretende, chegando aqui a esta hora?
- Desculpe, senhor, disse Roberto. Estou mesmo atrasado.
- Está, pois não?, repetiu Scrooge sarcasticamente. É, acho que está, sim. Chegue até aqui, por favor.
- É somente uma vez por ano, senhor, ponderou Bob, saindo do seu cubículo. Prometo que não se repetirá. Eu me diverti um pouco ontem à noite.
- Pois vou lhe dizer uma coisa, meu caro, disse Scrooge. Não vou mais tolerar isso. Portanto, continuou, dando um salto da cadeira e espetando com tal firmeza o indicador no estômago de Roberto que o coitado recuou cambaleante, de volta ao seu cubículo, portanto, vou aumentar seu ordenado!
Ainda trêmulo, o rapaz pousou a mão sobre uma régua de metal que estava sobre a mesa. Por um momento tinha-lhe passado pela mente a idéia maluca de abater Scrooge com um golpe do instrumento, saltar sobre o antagonista caído e pedir socorro aos transeuntes.
Mas Scrooge prosseguiu, sorridente:
- Feliz Natal, Roberto!, disse, dando-lhe uma palmada amigável nas costas. Que seja um Natal mais feliz do que o que tem tido há muitos anos, meu amigo! Vou aumentar o seu ordenado e procurar ajudar a sua esforçada família. Esta noite vamos discutir os seus negócios sobre uma boa tigela de grog, meu caro Roberto. Não escreva nem mais uma linha antes de avivar o fogo e comprar outra lata de carvão.
Scrooge cumpriu a palavra e foi muito além. Para o pequeno Tim, que afinal conseguiu sobreviver, foi um segundo pai. Tornou-se o melhor amigo, o melhor patrão, o melhor homem que jamais se encontrou naquela cidade, ou em qualquer outra cidade deste mundo.
Muita gente zombava da mudança que se operara nele, mas ele deixava-os rir e pouco se importava. Tinha bastante discernimento para saber que a bondade e o desinteresse raramente são bem compreendidos pela maioria das pessoas. E, sabendo que era inútil tentar convencê-los, tanto fazia que rissem ou lhe fizessem caretas. Seu coração estava sempre alegre e isso lhe bastava.
Nunca mais teve contato com espíritos de qualquer espécie. Contentava-se em procurar se entender o melhor possível com seus semelhantes. E foi tão bem-sucedido que chegaram a afirmar que não havia ninguém que festejasse com mais entusiasmo o Natal do que Scrooge.
Que todos possam dizer o mesmo de nós com igual justiça. E, para encerrar, vamos repetir com o pequeno Tim:
- Que Deus nos abençoe a todos e a cada um de nós. Amém!

ooooooooooooooooooooooo

O trecho literário acima é o desfecho do romance Conto de Natal (A Christmas Carol), de Charles Dickens, traduzido para o português por Elsie Lessa, para uma edição de 1970 da editora Tecnoprint. Este blog se permitiu fazer uma pequena revisão, mais com o sentido de atualizar o estilo.
Nesse epílogo, Dickens descreve a transformação operada no avarento Scrooge depois de receber a visita de três espíritos do bem na véspera do Natal. Roberto Cratchit, seu empregado, sofria antes com o frio no local de trabalho porque o patrão não lhe permitia usar mais carvão no fogareiro. E o pequeno Tim era o filho aleijado de Roberto, de saúde gravemente abalada.
Que cada um de nós não precise da visita de espíritos e nem mesmo da chegada do Natal para agir como o velho Scrooge resgatado de sua avareza. Que possamos a cada dia estar menos preocupados com o próprio bem-estar e mais interessados pelos outros, e assim ter, como diz Dickens, o coração sempre alegre. Que este Natal, assim como todos os outros, sirva para renovar em nós essa crença. Feliz Natal!

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Ingrid Bergman chinesa




Maggie Cheung e Ingrid Bergman


Algumas atrizes de cinema marcam a aparição em cena com um magnetismo derivado mais da expressão da personalidade interior do que da beleza ou mesmo do talento. O melhor exemplo se encontra na falecida Ingrid Bergman. A sueca Ingrid (1915-1982, curiosamente nascida e morta num mesmo dia 29 de agosto), mãe da também atriz Isabella Rossellini, além de bela e extremamente talentosa exercia um magnetismo incomum sobre a platéia porque, através do olhar, conferia uma dimensão interior de enorme grandeza às personagens interpretadas na tela. São muitas as cenas em que Ingrid exibiu à saciedade essa característica, todas inesquecíveis para o cinéfilo. Algumas delas: 1) o close em Por Quem os Sinos Dobram (For Whom de Bell Tolls, 1943), de Sam Wood, quando sua María é vista pela primeira vez pelo aventureiro Roberto (Gary Cooper); 2) o momento em que Ilsa pede a Sam (Dooley Wilson), o pianista, que toque de novo As Time Goes By no bar de Rick (Humphrey Bogart) em Casablanca (idem, 1942), de Michael Curtiz, para submergir no passado; e 3) a expressão de angústia quando Paula descobre que Gregory (Charles Boyer), o marido, lhe furtava jóias em À Meia-Luz (Gaslight, 1944), de George Cukor. É notável que Ingrid tenha feito esses três filmes essenciais de sua carreira e se consagrado como grande atriz antes dos 30 anos.
A expressividade do olhar, buscada insistentemente como recurso de mise-en-scène por alguns diretores, como o americano Nicholas Ray – não foi por acaso que ele escolheu Joan Crawford para estrelar Johnny Guitar (idem, 1954), James Dean para Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955) e Anthony Quinn para Sangue sobre a Neve (The Savage Innocents, 1960) -, é uma qualidade revelada mais por mulheres no cinema, mas há exceções masculinas. Além dos citados Quinn e Dean, pode-se lembrar de Tony Curtis em Taras Bulba (idem, 1962), de J. Lee Thompson, sobretudo na cena em que ele vê na carruagem na neve Christine Kaufmann, por quem, aliás, abandonou a então mulher Janet Leigh na vida real, e Marcello Mastroianni em Ciúme à Italiana (Dramma della Gelosia, 1970), de Ettore Scola. Seu pedreiro Oreste, enlouquecido de ciúme pela mulher, Adelaide (Monica Vitti), que o trocou pelo pizzaiolo e amigo Nello (Giancarlo Giannini), foi composto de forma magistral, quase só com base no olhar perdido. Nenhum deles, contudo, alcançou numa só cena a intensidade de Merle Oberon, a Cathy de O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights, 1939), de William Wyler, ao surpreender-se pelo reencontro com Heathcliff (Laurence Olivier) no salão de baile. Provavelmente nunca houve, na história do cinema, uma demonstração tão rica de matizes da emoção sem palavra, mesmo durante a época do cinema mudo, em que a maquiagem realçava os olhos de atores e atrizes para melhorar a expressividade.
Em tempos mais recentes surgiram outras atrizes de grande talento, mas pouquíssimas conseguem dizer qualquer coisa só com o olhar, como Ingrid Bergman. Embora cheguem perto, as americanas Meryl Streep, Glenn Close e Jodie Foster, três das melhores, dependem mais da fala e do gestual. Já Debra Winger, que com sua beleza e os imensos olhos fez lembrar a atriz sueca no começo da carreira, ficou só na promessa. A todas falta ainda o charme de Ingrid, mas aí já é covardia, porque mulheres sedutoras como ela se contam nos dedos, no cinema e na vida real.
Entre as raras exceções dos dias de hoje, nesse aspecto, pode ser incluída a atriz chinesa Maggie Cheung. Não é por acaso que ela já recebeu prêmios de interpretação em alguns dos mais importantes festivais de cinema no mundo, como Cannes e Berlim. Sua versatilidade pode ser comprovada no suntuoso Herói (Hero, 2002), de Zhang Yimou, no qual faz o papel de uma espadachim, e no delicado Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love, 2000), de Wong Kar Wai, em que vive uma mulher casada infeliz com o adultério cometido pelo marido e em dúvida se aceita um novo relacionamento amoroso. A cena em que pergunta ao amigo, que se finge de marido, se ele tem ou não uma amante, é reveladora de seu imenso talento. A mesma pergunta é feita por ela duas vezes. Na primeira, em tom agressivo, quase ameaçador. Na segunda, com jeito sofrido, desamparado. E em ambas, além da inflexão na voz, Maggie usa como recurso de expressão o olhar.
A cena vale por uma aula de cinema e só poderia ser realizada como o foi por uma atriz excepcional. Talvez por isso não haja exagero em chamar a sedutora Maggie de a Ingrid Bergman chinesa.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Lição de jornalismo

Aos 70 anos de idade, 51 de carreira e 43 de casamento com uma só mulher, dono de sete prêmios Esso, o Oscar do jornalismo brasileiro, José Hamilton Ribeiro, o caipira de Santa Rosa do Viterbo, interior paulista, único repórter brasileiro mutilado de guerra que se conhece, é quase uma lenda viva para os jovens profissionais de imprensa no país. Mesmo para os mais experientes na profissão, ele é uma referência de dignidade e competência, alguém a quem se tiraria o chapéu num encontro casual, se chapéus usássemos ainda, em sinal de reverência.
Zé Hamilton, o grande repórter da inesquecível revista Realidade, pela qual perdeu uma perna na cobertura da guerra do Vietnam, hoje trabalhando no programa Globo Rural, da TV Globo, onde já está há 25 anos, conta alguns 'causos' de sua vida profissional e pessoal em longa entrevista concedida aos jornalistas Eduardo Ribeiro, Wilson Baroncelli e André Carbone, da publicação Jornalistas & Cia., para a oitava edição da série Protagonistas da Imprensa Brasileira.
A riqueza de detalhes reveladores da personalidade de Zé Hamilton e a transcrição de narrativas e opiniões dele a respeito de fatos e personagens da profissão tornam a entrevista um documento precioso para os arquivos da história do jornalismo brasileiro. Bem-humorado, ele mesmo diz que, de tão antigo, más línguas lhe atribuem a cobertura da primeira missa rezada no Brasil. Esse trabalho, afirma, não fez. Mas confessa que foi o autor da reportagem da primeira missa em Brasília, nos anos 50, publicada no jornal Folha de S. Paulo.
Embora Jornalistas & Cia. se destine apenas a assinantes, as entrevistas da série Protagonistas podem ser lidas no site da publicação (clique aqui). A de Zé Hamilton deverá ser postada talvez amanhã ou depois, de modo que vale antecipar, como curiosidade, a fórmula dada pelo entrevistado para definir o que vem a ser uma grande reportagem. Segundo ele, GR (grande reportagem) é igual a BC + BF sobre T x T1 elevados a uma certa potência, sendo BC a sigla de 'bom começo', BF, de 'bom final', T, de 'trabalho', e T1, de 'talento'.
"A grande reportagem é igual a um bom começo mais um bom final. Precisa ter um bom começo para prender a atenção do leitor. E um bom final para o cara se sentir recompensado, dizer 'puxa vida, que pena que acabou'. Mas o que é que põe no meio?", pergunta Zé Hamilton. E responde: "Aí é que está! T, que é trabalho, vezes T1, que é talento, elevados à potência 'n', de necessária." E o que seria uma potência necessária? A esse respeito ele conta a anedota segundo a qual a rainha Elizabeth, indagada por um repórter sobre qual era a potência de seu Rolls-Royce, respondeu-lhe simplesmente: "A necessária".
Como uma anedota leva a outra, pode-se lembrar também, a propósito da fórmula enunciada pelo grande jornalista, o que recomendou o escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893), autor da obra-prima do conto universal Bola de Sebo, a um jovem aspirante às belas-letras. "Para escrever um bom conto você precisa de um bom começo e de um bom final", disse ele. "E no meio, mestre, o que entra?", quis saber o pressuroso jovem. "Ah", respondeu Maupassant, "no meio entra o artista".
José Hamilton Ribeiro tem conteúdo e talento de sobra para preencher esse miolo de texto.

Pega ladrão

Em boa hora o Supremo Tribunal Federal decidiu que é ilegal o aumento de 90,7% que os deputados e senadores se concederam, em nome da isonomia em relação aos salários do próprio STF. Tratava-se, de fato, de uma imoralidade, não apenas porque os parlamentares transformaram em piso o que é teto dos vencimentos de servidores públicos mas também porque já recebem uma série de regalias como 15 salários por ano, ajudas de custo para gastos com combustível e estadia, auxílio-moradia (no caso de não ocuparem apartamentos funcionais), verba para despesas de gabinete, inclusive pagamentos de funcionários, e ainda passagens aéreas ida-e-volta, entre Brasília e o estado de origem, a cada fim de semana. Tudo somado, dá mais de 100 000 reais por mês, valor que transforma os deputados e senadores brasileiros nos parlamentares mais bem pagos do planeta, segundo observou o jornal espanhol El Pais. Como se fosse pouco, eles ainda têm direito a uma régia aposentadoria depois de apenas oito anos de contribuição ao sistema de previdência do Congresso, enquanto os trabalhadores do setor privado, que se aposentam com uma fração do que recebem no contra-cheque, precisam contribuir para o INSS durante 35 anos.
Esse verdadeiro assalto aos cofres públicos foi perpetrado pelas mesas diretoras do Senado e da Câmara, com a concordância dos líderes partidários. Os presidentes das duas casas do Congresso, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), ambos em campanha para a reeleição aos atuais cargos, não pestanejaram em fazer caridade com o chapéu alheio, ou seja, dos contribuintes, para anabolizar as respectivas candidaturas. E assim como agem os gatunos em geral, com discrição e na calada da noite para não chamar a atenção da polícia, escolheram para o gesto magnânimo a época natalina, em que o Congresso vive praticamente às moscas. Não contavam, decerto, com a reação popular subseqüente, respaldada por entidades como a OAB e a CNBB. Em Brasília, ontem, houve também protestos de sindicalistas e estudantes.
A decisão do Supremo foi tomada no julgamento de mandado de segurança impetrado pelos deputados Carlos Sampaio (PSDB-SP), Fernando Gabeira (PV-RJ) e Raul Jungmann (PPS-PE), que questionaram a validade de um reajuste salarial concedido por medida administrativa, sem passar pelo plenário e com base num decreto legislativo caduco. Agora, segundo se noticia, o Congresso tende a aprovar um aumento mais moderado, de 28,4%, equivalente à inflação ocorrida no país desde 2003, ano do último reajuste salarial dos parlamentares. Com esse percentual, em vez dos 24 500 reais aprovados por Renan e Rebelo há menos de uma semana, para vigorar na próxima legislatura, o salário nominal iria para 16 500 reais. Ainda é muito, porque são quase 600 os senadores e deputados federais brasileiros e também porque essa gente só freqüenta o local de trabalho três dias por semana.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Estilo ou complexo?

Há muito tempo uma verdade vem se impondo nos confrontos entre europeus e brasileiros em campos de futebol: a de que nossa supremacia nessa área se deve não tanto ao talento individual, mas a uma diferença essencial de comportamento no instante de se definir uma jogada em direção ao gol.
Raramente se vê, de fato, um atacante brasileiro tentando fazer gol de fora da área. Por aqui, até os chamados cabeças-de-bagre procuram aproximar-se mais da meta adversária para o chute conclusivo, ou driblando ou trocando passes com um companheiro. Muitas oportunidades são assim desperdiçadas. Em compensação, os chutes desferidos de dentro da área se tornam muito mais letais. Já os atacantes europeus normalmente não agem assim. Seja por condicionamento técnico e psicológico, seja por simples complexo de inferioridade em relação aos habilidosos brasileiros, chutam de qualquer lugar, e quase sempre erram.
Aconteceu de novo no jogo de ontem, em Tóquio, entre o Barcelona e o Internacional gaúcho, valendo o título mundial interclubes. Havia mais talento no lado espanhol, graças sobretudo às presenças de Ronaldinho Gaúcho e Deco, dois brasileiros. Como os campeonatos europeus estão em pleno andamento e no Brasil se vive o fim de uma temporada, o preparo físico do Barcelona também era superior. Com isso, o domínio de jogo pertencia francamente ao time espanhol. Pouco antes do gol, a traduzir seu maior volume de ações ofensivas, o Barça batia o sétimo escanteio, contra apenas um do Inter. Até aquela altura também construíra mais oportunidades de gol que o rival.
Mas, para seu azar, não tinha Eto'o, machucado. Foi para o jogo com o substituto Gudjohnsen, um típico atacante europeu, que chuta de primeira quando a bola chega. Nada da picardia nem do veneno do africano Eto'o, formado em escola parecida com a brasileira, em sua terra de origem. Poucos antes do único gol da partida, surgiu para o centro-avante do Barcelona uma oportunidade ainda mais clara do que a oferecida para Adriano. Postado na área do Inter, ele podia dominar a bola, olhar para o goleiro, dar uma ginga para desequilibrá-lo e bater na direção de seu contrapé. Um jogador de várzea no Brasil faria isso. Mas não Gudjohnsen, que deu um chutão e mandou a bola por cima da meta.
Um clube milionário como o Barcelona não pode ter apenas um centro-avante de respeito no time, e ficar na mão quando ele se machuca. Já que possui tantos brasileiros no elenco, por que não mais um? Fred, Wagner Love, Nilmar, Adriano (da Internazionale, de Milão), até o gordo Ronaldo, qualquer um deles no lugar de Gudjohnsen teria decidido o jogo em seu favor, ontem, em Tóquio. Um atacante brasileiro poderia perder várias ocasiões de gol. Mas 1 x 0 é mais do que suficiente para se levantar uma taça, como mostrou Adriano, do Inter gaúcho, de alcunha Gabiru.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Visão turva

O escritor chileno Ariel Dorfman escreve para o jornal The New York Times, a respeito da morte do facinoroso ex-ditador Augusto Pinochet (trecho da tradução publicada hoje em O Estado de S. Paulo): "A fim de nos livrar de sua terrível influência, deveríamos ter deixado para sua família e seus poucos amigos íntimos a tarefa de chorar sua morte. Em vez disso, somos obrigados a assistir ao triste espetáculo de um terço do país lamentando sua partida, um terço do Chile ainda cúmplice silencioso de seus crimes, ainda justificando seus crimes, ainda festejando o fato de o general ter derrubado Salvador Allende, o presidente constitucional do Chile".
Responsável por ordem direta ou acobertamento pela morte de mais de 3 000 pessoas no Chile, na violenta repressão desfechada sobre a população civil identificada com a resistência ao golpe de 11 de setembro de 1973, Pinochet morreu no domingo passado, aos 91 anos de idade, e teve as cinzas do corpo cremado (por medo de alguma represália por parte dos familiares) enterradas ontem num cemitério de Santiago, sem honras de Estado, apenas com as devidas à sua condição de ex-comandante do Exército chileno. A cerimônia, que a presidente do país, Michelle Bachelet, esperava ver transcorrer com ordem e calma, registrou um incidente. Um discurso político de exaltação ao morto por parte de seu neto, o capitão Augusto Pinochet Molina, causou mal-estar a alguns dos 4 000 presentes, sobretudo à representante do governo, a ministra da Defesa, Vivianne Blanlot, que respaldada pela presidente exigiu providências do comando do Exército. E o capitão foi expulso hoje das fileiras da corporação.
As feridas abertas pelo golpe e pela repressão ainda estão longe de cicatrizar no Chile, como mostra o artigo do escritor Dorfman. Mas pelo menos, por lá, um processo judicial foi movido contra o ex-ditador, que só não foi julgado e condenado pelos crimes graças às artimanhas de seus advogados. Já no Brasil, o país da pizza, o passado tenebroso da ditadura militar foi empurrado para baixo do tapete. Em nome de uma Lei de Anistia que contemplou os dois lados, o da repressão e o da resistência civil, em lugar do ajuste de contas para curar as chagas assiste-se ao mutismo governamental, à ocultação de provas e documentos e à compra do silêncio por meio de régias indenizações, pagas com o dinheiro do contribuinte, aos perseguidos pelo regime militar e seus familiares.
Não é de admirar, em tais circunstâncias, que cadetes do Exército achem muito natural homenagear em sua formatura o general Emílio Garrastazu Médici, o chefe da ditadura no período mais negro da repressão deflagrada no país depois do golpe de 1964. E como, quando uma pizza espalha seu cheiro, outros também tentam locupletar-se com ela, mesmo não passando de comensais surgidos depois da ditadura, deputados do Congresso, com a maior cara-de-pau, tentaram aprovar um projeto que anistiaria todos os sanguessugas e mensaleiros da atual legislatura ainda não julgados, dificultando a reabertura dos respectivos processos na próxima. Os autores da tentativa precisaram recuar diante da grita de líderes da oposição, mas nada indica que não possam voltar à carga mais adiante.
Nesse novo episódio vergonhoso para o país, tramado no recinto da Câmara pelo líder do PT e seus aliados do PP, do PMDB, do PCdoB, do PL e do PSC, enfim, os mesmos de sempre, parece ter prevalecido o entendimento de que as urnas de outubro não apenas consagraram um candidato presidencial, mas deram permissão para que se passe a borracha nos crimes de corrupção cometidos por parlamentares da situação e outros apaniguados do poder reconfirmado. Vai daí que até a CPI dos Sanguessugas, criada no calor da hora, antes das eleições, entra no clima de liberou geral e decide acusar apenas quatro pelo dossiê Vedoin, os dois petistas presos com 1,75 milhão em reais e dólares em São Paulo, Gedimar Passos e Valdebran Padilha, mais o suposto chefe da operação, Jorge Lorenzetti, e o ex-assessor de campanha ao governo paulista do senador Aloizio Mercadante, Hamilton Lacerda. Se era para chegar a resultado tão pífio não havia necessidade de uma CPI.
Quando a bandalheira assume uma dimensão como a atual, na política, até pessoas mais bem-intencionadas chegam a perguntar com seus botões se não era melhor no tempo da ditadura. Pelo menos havia autoridade na época, raciocinam – e os cadetes da Academia de Agulhas Negras que vão homenagear Médici deixam de ser vistos como uns energúmenos para passar a sê-lo como cidadãos patrióticos e conscientes.
Até quando a falta de senso nos impedirá de ver um caminho reto para a democracia brasileira?

A mulher e o lobo

Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras faca escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?


(Poema do Lobo-do-Mar, de Iracema Macedo, nascida em Natal, Rio Grande do Norte, em 1970, e hoje professora de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais. Que cabeça privilegiada tem essa moça, que ensina o saber acumulado pela razão e nem por isso perde um átomo de sua sensibilidade? Segundo o poeta e jornalista Carlos Machado, de cujo mais recente boletim Poesia.net foram copiados os versos, Iracema faz uma 'poesia solar, emocionada e nitidamente feminina', sem que esse último qualificativo encerre qualquer visão machista. O livro no qual foi publicado o poema, Lance de Dardos, de 2000, é segundo Machado um dos melhores de poesia lançados no Brasil nestes primeiros anos do século XXI. Você também pode receber regularmente, por e-mail, os imperdíveis boletins periódicos Poesia.net. Para tanto, basta entrar no site Ave, Palavra!, por este link, e lá clicar no botão correspondente, apresentado logo na página principal)

O ladrão de casaca

É antigo o fascínio da indústria do cinema por um personagem politicamente incorreto, que subverte a tradicional ascendência do bem sobre o mal na definição dos papéis de mocinho e bandido: Arsène Lupin, o ladrão de casaca, criado pelo escritor francês Maurice Leblanc. Uma das aventuras de Lupin, retirada da série de romances que fizeram sucesso na primeira metade do século passado, foi filmada já em 1909, praticamente no alvorecer do cinema, num curta-metragem francês. O primeiro longa surgiu em 1916, com o ator Gerald Ames como Lupin, numa produção inglesa. No ano seguinte foi a vez de outro filme, agora americano, com Earle Williams no papel-título. Nas décadas seguintes, com o advento do cinema falado, o personagem continuou a ser retratado nas telas, sem muita freqüência mas sempre tendo seu nome a encabeçar o título, como nos romances de Leblanc. A crítica considera As Aventuras de Arsène Lupin, de 1957, dirigido pelo francês Jacques Becker e com o ator Robert Lamoureux, o melhor filme de todos. Mas a principal curiosidade é que o elegante ladrão protagonizou até um desenho animado japonês de longa metragem, realizado no mesmo ano do filme de Becker por Hayao Miyazaki. De olho nas bilheterias, os produtores do desenho misturaram alguns personagens da terra inventados aos originais, além de cometer a heresia de fundir numa só pessoa Clarisse e a condessa de Cagliostro, que nos romances são duas mulheres distintas. Lupin claramente inspirou ainda outros filmes não referidos a ele, como Ladrão de Casaca (1955), do mestre do suspense Alfred Hitchcock, com Cary Grant, e O Ladrão Aventureiro (1967), do grande diretor francês Louis Malle, com Jean-Paul Belmondo.
O fascínio pelo personagem é explicável. Embora caminhe pela senda do crime, Lupin é acima de tudo um cavalheiro, incapaz de matar ou de cometer violências gratuitas contra suas vítimas e os policiais que o perseguem sem sucesso, como o inspetor Ganimard, embora sendo um perito em artes marciais. Despreza o dinheiro e mira só em objetos de arte e jóias finas para furtar, algumas destas do colo de mulheres que não esquece de galantear, e sempre preferindo situações desafiadoras ao talento e à inteligência às mais fáceis. Apreciador de charutos e vinhos de boa cepa, é ao seu modo um bon-vivant, um personagem típico da belle époque francesa da passagem do século 19 para o 20. Com tal perfil, nunca poderia ser, portanto, um reles bandido. Não é de admirar que mesmo atuando no lado oposto ele se tenha tornado um competidor, na literatura, de sagazes detetives como Sherlock Holmes, de Conan Doyle, Hercule Poirot, de Agatha Christie, e o inspetor Maigret, de Georges Simenon.
A TV paga, na rede Telecine, exibiu ontem o mais recente Arsène Lupin do cinema, uma produção francesa com título homônimo de 2004, dirigida por um cineasta com sobrenome de mulher, Jean-Paul Salomé, e que contou também com dinheiro italiano, espanhol e inglês. Apesar de o dentuço ator Romain Duris parecer algo deslocado no papel do fino ladrão-cavalheiro e de o filme ser do tipo over, exagerado nos movimentos de câmera, nos cortes nervosos e na sucessão de situações de perigo, em prejuízo do aprofundamento psicológico dos personagens e da verossimilhança do roteiro, o produto final não deixa de ter algumas qualidades. O melhor dele são as atrizes. A inglesa Kristin Scott Thomas, de O Paciente Inglês e Assassinato em Gosford Park, está fascinante como a sedutora condessa de Cagliostro, um misto de dama da nobreza com feiticeira dona do tempo e assassina, e a parisiense Eva Green, de quem o cineasta Bernardo Bertolucci, seu diretor em Os Sonhadores (The Dreamers, 2003) disse que "de tão bela chega a ser indecente", faz uma adorável Clarisse de Dreux-Soubise. Eva, hoje com 26 anos, que pôde ser vista ainda em Cruzada (Kingdom of Heaven, 2005), de Ridley Scott, e atua no próximo filme da série do agente 007, James Bond, é filha da atriz francesa já aposentada Marlène Jobert e tem uma irmã gêmea chamada Joy.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Engajada ou alienada?

Na sua esplêndida crônica publicada hoje nos jornais O Globo e o Estado de S. Paulo (clique aqui para ler a íntegra, no site de O Globo. Quem não é assinante precisa cadastrar-se para ter acesso), Arnaldo Jabor fala de sua decepção com a Bienal. "Os trabalhos repetem os mesmos códigos e repertórios: terra arrasada, materiais brutos e sujos, desarmonia, assimetria, uma busca deliberada da feiúra, uma clara vergonha de ser 'arte', vergonha de provocar sentimentos de prazer", escreve. "A fruição poética é impedida, como se o prazer fosse uma coisa reacionária, 'alienada', ignorando o 'mal do mundo', que tem de ser esfregado na cara do espectador para que não esqueça o horror social e político que nos assola. É como se a própria arte fosse uma babaquice a ser evitada."
Depois do impacto negativo causado nele por essas obras, Jabor foi ver, segundo escreve, a exposição Raízes da Forma, no mesmo Museu de Arte Moderna de São Paulo. E ao deparar com a manifestação do belo na mostra rememorativa do movimento concretista que ocorreu nos anos 50, manifestação ausente da Bienal, diz ele: "(...) diante das formas puras, reencontrei-me com a transcendência, sim, ali, no concreto. Sim, a arte que nos pacifica, eleva, nos silencia. E tive a certeza inapelável: a forma é tudo. Na forma está a verdade, muito mais que na gritaria de denúncias e conteúdos desesperados como panfletos. No silêncio da forma a beleza nos espera, a esperança de sentido nos aplaca. Na beleza das formas organizadas, no desenho da razão está um sentido misterioso, mas imperioso para a vida. Lembrei-me então de uma frase de Stravinski: "A obra de arte deve ser exultante". E entendi que desistir da beleza é uma confissão de derrota, é legitimar os inimigos."
Em sua crônica Jabor retoma portanto uma discussão tão antiga quanto irresolvida, a da pretensa dicotomia existente entre arte 'engajada' e arte 'alienada'. Teóricos da linha de frente de defesa do primeiro tipo de arte, como o filósofo marxista húngaro George Lukács, tiveram largo consumo na Faculdade de Filosofia e Letras da USP, durante a década de 60 e mesmo depois. Com a cabeça feita por tais leituras, houve críticos que tentaram menosprezar até a obra de Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, com o argumento de que sendo mulato e filho de lavadeira com pintor de paredes, sem instrução escolar formal e ainda por cima pobre durante boa parte da vida, ele não poderia ter construído uma literatura tão 'branca', cosmopolita e desligada da realidade vigente em seu tempo no país, quando a abolição da escravatura e a República foram decretadas com o escritor já perto dos 50 anos de idade.
Falácia pura, porque, se como Jabor lembra não pode haver arte numa caixinha com excrementos colhidos do próprio artista, também não existe arte na manifestação desprovida de talento e transcendência do que quer que seja, apenas pelo fato de expressar a miséria e o horror circundantes. Guernica, de Picasso, Os Fuzilamentos de Terceiro de Maio de 1808, de Goya, os Ciprestes, de Van Gogh, ou O Grito, de Munck, ao contrário, embora trabalhassem com os mesmos registros da vida externa ou interior de cada artista, cunharam-se como obras-primas pela genialidade com que a forma de expressão foi utilizada, com o simbolismo mimetizando a visão da realidade e o sintético em lugar do analítico na sintaxe da linguagem.
Mesmo nos tempos atuais, quando a banalização da vida raia o absurdo, seja pela ação de bombas na Palestina, no Iraque e no Líbano, seja pelo efeito da fome na África setentrional, seja ainda pela prática de assassinatos cruéis ligados à política ou ao crime, como o do casal e do filho queimados vivos dentro de um carro em Bragança Paulista, na noite de domingo passado, porque os autores do roubo a uma loja não queriam deixar testemunhas, os cânones da arte continuam valendo.
A questão não está em edulcorar ou não a realidade, até porque esta sempre supera a arte na violência e no horror. A chave, como diz Jabor, se encontra na forma, e não no conteúdo. Mas saber trabalhar essa forma é que são elas.
Os verdadeiros artistas sabem, e para comprovar isso basta visitar um grande museu ou a Capela Sistina do Vaticano, onde o conjunto de belezas reunido é tão impressionante que dá vontade de sentar no chão para chorar de êxtase. Nada a ver com caixinhas de excrementos. Nem com essa discussão boba sobre engajados e alienados, como se a arte, esse domínio no qual os homens chegam a alcançar alturas inacreditáveis, quase divinas, pudesse ser reduzida a simples rótulos.

domingo, 10 de dezembro de 2006

John e Paul

"Os Beatles eram um mecanismo de criação. Sempre olhando para a frente, sem jamais se escorar no êxito formulaico. A força propulsora desse mecanismo era (eis a minha tese central) a interação dialética de Lennon & McCartney. Uso a palavra sem pedantismo, em seu sentido mais amplo. Dialética é diálogo, embate, discussão. Mas também o jogo permanente e sem descanso. Adição e contradição; unidade e multiplicidade; identidade e diferença. Movimento e síntese. Dois compositores igualmente geniais, mas com inclinações distintas, por vezes opostas. Dois líderes cheios de idéias e talento. Um levando o outro a permanentemente se superar. Ambos avançando: ora juntos, ora separados. Nenhum permitindo ao outro se acomodar. Nenhum aceitando ser deixado para trás.
Em geral, as grandes parcerias musicais são compostas por um melodista e um letrista, que unem forças, formando uma perfeita unidade: Rodgers e Hart, George e Ira Gershwin, Tom e Vinícius, Lieber e Stoller, Page e Plant, Keith Richards e Mick Jagger, Elton John e Bernie Taupin. No caso de Lennon & McCartney tudo muda. Ambos eram compositores completos, autônomos. Mas entenderam, desde cedo, a importância de buscarem um ao outro. Muitas duplas de compositores somam. John e Paul multiplicam. (...)
Quando os Beatles se separaram, essa magia se rompeu. John e Paul se tornaram compositores com altos e baixos; intérpretes com falhas às vezes evidentes. Fizeram coisas boas. Deram material para compilações de peso. Mas raramente se aproximaram da perfeição alcançada pelo quarteto."

(De Beatles, artigo do diplomata e escritor Marcelo O. Dantas na revista Piauí, número 3, deste mês. Quem não comprou a revista pode ler – melhor dito, deve ler - a íntegra do texto no site da publicação. Clique aqui para ir ao endereço)

sábado, 9 de dezembro de 2006

A boa Constituição

Quando a atual Constituição estava sendo elaborada pelos parlamentares eleitos para atuarem também como Assembléia Constituinte, muitos questionaram as minudências do texto em preparação. Acabou prevalecendo, porém, a posição dos defensores da extensão dos dispositivos constitucionais, os quais argumentavam que era necessário devolver às pessoas, no menor prazo possível, a cidadania perdida durante os anos da ditadura. E surgiu assim uma Carta com centenas de artigos e outro tanto de disposições transitórias, legislando dos princípios e garantias fundamentais às competências dos três poderes da República, do monopólio do Estado em relação às riquezas do subsolo às vinculações obrigatórias do orçamento da União, das normas para a aposentadoria do funcionalismo à duração da licença-maternidade das trabalhadoras. No afã de tudo prever, os autores da chamada 'Constituição cidadã' trocaram a concisão pela prolixidade, ignorando o exemplo bem-sucedido da Carta americana, de apenas 7 artigos. Os Estados Unidos transformaram-se na maior potência econômica do planeta aplicando o conceito do 'small is beautiful' à sua Constituição. O Brasil resolveu fazer exatamente o contrário.
Como o excesso chama mais excessos, desde a promulgação da Constituição em 1988, portanto, há recentes 18 anos, 52 emendas já foram nela introduzidas. E para aumentar ainda mais a colcha de retalhos existem no momento mais de 2 000 projetos de emendas em tramitação no Congresso, segundo o articulista Aloísio de Toledo César, de O Estado de S. Paulo, que além de jornalista é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. A Constituição americana, lembra César, sofreu até agora apenas 26 emendas, em 216 anos de vigência.
Não se trata apenas de uma questão de latinidade no sangue. A Carta brasileira tornou o país ingovernável, entre outros motivos pelo engessamento do orçamento da União, um fator de estímulo ao contínuo aumento da carga tributária; pela avalanche de ações judiciais que provoca a cada emenda aprovada no Congresso, por conta do direito adquirido; e pela barreira que antepõe à modernização das relações entre o capital e o trabalho, contribuindo para elevar o nível de desemprego.
O projeto de autoria do deputado Luiz Carlos Santos (PFL-SP) que prevê a instalação, no início da próxima legislatura, de uma Assembléia de Revisão Constitucional, poderia ser uma solução, se aprovado, para reverter essa situação de descalabro. O prazo para o Congresso decidir se aprova ou não o projeto encerra-se no fim do ano, portanto daqui a menos de 20 dias, se descontarmos o Natal e os fins de semana.
Mas a revisão também pode ter um resultado contrário ao desejado. De início, cabe a ressalva de que pesa sobre vários parlamentares da próxima legislatura uma carga de suspeição, por terem seus nomes associados aos casos de corrupção levantados nos últimos anos. Além disso, há o fato de os senadores e deputados eleitos ou reeleitos não se terem apresentado para o eleitorado na condição de constituintes. Quanto à proposta em si, sua eficácia depois de transformada em lei vai depender do encaminhamento a ser adotado no Congresso.
De nada adiantará revisar a Constituição se ela continuar do mesmo tamanho, com muitos detalhes que deveriam fazer parte da legislação ordinária, e se nenhuma das cláusulas pétreas puder ser modificada. Há também o risco de a Carta tornar-se ainda mais confusa, com a liberdade dada aos parlamentares de fazerem as mudanças que quiserem, ou com o sistema de votação em separado de destaques.
Para que nossa Lei Maior não assuma definitivamente uma feição de samba de doido, seria necessário limitar o número de revisões por bancada, e fazer a conciliação das propostas com a ajuda de juristas de grande reputação nas diferentes comissões temáticas. Talvez fosse até mesmo o caso de nomear uma comissão de notáveis, constituída de especialistas nos assuntos tratados, para a elaboração de um texto básico que servisse de ponto de partida para os trabalhos no Congresso.
Não se trata, portanto, de fazer uma revisão apenas para correções pontuais no texto da Constituição. É preciso enxugá-lo ao máximo, retirando dele tudo o que não lhe diz respeito propriamente, como o de legislar sobre matéria fiscal ou sindical, para dar ao país uma Carta mais adequada à busca do desejado desenvolvimento econômico e social com normalidade democrática. Em poucas e boas palavras, precisamos de outra Constituição, e não de remendos na que temos.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Justiça mais justa

Demorou, mas finalmente sobe para a derradeira instância, a sanção presidencial, a criação da súmula vinculante, um instrumento jurídico capaz de desafogar imensamente os tribunais brasileiros e com isso permitir que eles tenham melhor imagem perante a população. Prevista num dos projetos da série de reforma do Judiciário, aprovada ontem por voto simbólico na Câmara dos Deputados, a súmula vinculante fará com que algumas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal adquiriam quase força de lei para todas as demais cortes da Justiça no país, evitando assim o prolongamento de pleitos judiciais por recursos apresentados às várias instâncias.
Trata-se de medida profilática de grande interesse social, ainda mais porque a criação da súmula, baseada em decisões passadas do Supremo, poderá ser solicitada por órgãos governamentais dos três poderes, a começar da própria Presidência da República e da Advocacia-Geral da União, além do Congresso Nacional, e também por entidades de defesa civil como a Ordem dos Advogados do Brasil, e do patronato e dos trabalhadores do setor privado como as confederações da indústria, do comércio e da agricultura e as sindicais. Com tanta gente podendo requisitar a criação das súmulas, certamente haverá quem queira legislar apenas em causa própria, em prejuízo de terceiros. Mas contra isso existirá a salvaguarda de a criação de uma súmula poder ser questionada ao próprio Supremo, e este poder derrubá-la por decisão plenária.
Enfim, podemos estar no limiar de um novo tempo, com uma Justiça mais atuante e também mais justa, por servir menos de instrumento do poderio econômico do que hoje. O lema de que a Justiça tarda mas não falha nunca se aplicou ao Brasil. Aqui, ela não só ela tarda como ainda falha, sobretudo em relação às demandas apresentadas pelos mais humildes, favorecendo assim os ricos e poderosos. Quem sabe se, com a súmula vinculante, isso possa começar a mudar.

Beleza dolorida

Certos termos da nossa língua têm uma expressividade incomum. É o caso do adjetivo 'lancinante', segundo o dicionário Aurélio apenas um sinônimo de 'muito doloroso, pungente ou aflitivo'. Pode ser, mas 'lancinante' diz mais. Lembra uma dor dilacerante, e não apenas aquela que se sente por fisgadas, outra interpretação dada ao termo pelo mesmo dicionário.
A palavra ganha ainda um charme especial quando aplicada como qualificativo de substantivos como 'beleza'. Sim, porque até a dor pode ser bela, na linguagem dos poetas. E beleza lancinante tem a música Mais Simples, de José Miguel Wisnick, já gravada por duas grandes cantoras, Zizi Possi e Ná Ozzetti.
Professor de teoria literária e literatura brasileira na USP, Wisnick é um erudito que tem como paixões, além dos livros, a música e o futebol. Estudou piano desde os 6 anos de idade, e aos 17 participou de um concerto no Teatro Municipal de São Paulo. Arrisca-se também a cantar, mas seu forte é mesmo como pianista e compositor.
"É sobre-humano amar/cê sabe muito bem/é sobre-humano amar sentir doer/gozar/ser feliz/.../é sobre-humano viver/e como não seria?/.../a vida leva e traz/a vida faz e refaz/será que quer achar/sua expressão mais simples". Não é sempre que se depara com uma letra dessa qualidade na música brasileira. Nem com uma melodia tão refinada quanto a de Mais Simples, que você pode ouvir clicando aqui, em arquivo da Rádio UOL. Zizi Possi canta, acompanhada ao piano por Wisnick.