terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

O 79.o Oscar

A escolha como melhor filme de Os Infiltrados, em lugar do superior Cartas de Iwo Jima, pode ter desapontado a muitos, mas para quem conhece a história do prêmio a 79a. cerimônia do Oscar, realizada na noite de domingo no Kodak Theatre, de Los Angeles, não ofereceu surpresas. O colégio eleitoral da Academia de Hollywood, hoje de mais de 6 000 membros espalhados pelo mundo, inclusive no Brasil, boa parte deles constituída de ex-ganhadores e finalistas do prêmio, tem por tradição unir o conceito de arte ao de entretenimento para chegar ao seu veredito. Para um filme tornar-se o vencedor não basta ser bem feito. É preciso que também renda uma boa bilheteria, sinônimo de aprovação pelo grande público. E, no segundo aspecto, Os Infiltrados tem ido melhor que Cartas de Iwo Jima.
Isso explica a série de injustiças cometidas ao longo da história do prêmio, que no entanto não chega a desmerecê-lo. Também nos festivais de cinema europeus mais importantes, Cannes, Veneza e Berlim, em que o júri é formado por um pequeno número de cineastas e artistas convidados, já houve decisões criticáveis. Além disso, o democrático colégio eleitoral do Oscar não se viu obrigado, nem neste ano, nem nos últimos vinte ou trinta, a fazer suas escolhas diante de uma safra de obras-primas. Ou seja, como os concorrentes ao prêmio de certa forma se equivaliam em torno de uma média elevada, a proclamação do resultado final, qualquer que fosse, não traduziria uma injustiça clamorosa.
Bem diferente foi o que aconteceu, por exemplo, em 1939. Naquele ano desfilaram diante dos membros da Academia, além do vencedor E o Vento Levou, de Victor Fleming, com Clark Gable e Vivien Leigh, clássicos absolutos como No Tempo das Diligências, um dos maiores westerns de John Ford, o número 1 do gênero, com John Wayne, O Mágico de Oz, a maravilhosa fábula com Judy Garland, dirigida também por Fleming, o inesquecível Ninotchka, com Greta Garbo, do mestre Ernst Lubitsch, A Mulher Faz o Homem, de Frank Capra, com um vibrante James Stewart, e sobretudo O Morro dos Ventos Uivantes, de William Wyler, com Laurence Olivier e Merle Oberon. Presença obrigatória em qualquer lista dos maiores filmes da história, O Morro (Wuthering Heights), conseguiu ser na condensação da linguagem cinematográfica até melhor do que o livro de Emily Bronté, no qual se baseou, num caso raro. Mesmo assim, perdeu o Oscar para o melodrama épico E o Vento Levou, bastante inferior a ele como obra de arte mas de grande sucesso nas bilheterias.
Onde talvez a 79a. premiação do Oscar tenha exagerado é no tom politicamente correto. Pela primeira vez houve uma mestre de cerimônias mulher, a apresentadora de TV Ellen De Generes, que não bastasse o gênero é ainda lésbica assumida. Simpática mas nada brilhante, as piadinhas sem graça de Ellen só parecem ter agradado mesmo é a Jack Nicholson, o cara que mais se diverte nas festas do Oscar. Ele ri por qualquer coisa. Riu até quando Ellen, em desespero de causa, começou a passar um aspirador de pó diante da primeira fila da platéia, para tentar parecer engraçada. A bola mais cantada do evento, a premiação de Martin Scorsese como melhor diretor, em sua sexta indicação, muito menos por Os Infiltrados e muito mais pelo conjunto da obra (ainda que seus melhores filmes sejam os de vinte ou trinta anos atrás), foi confirmada, assim como a do documentário ecológico Uma Verdade Inconveniente, produzido pelo ex-vice-presidente e candidato presidencial democrata derrotado pelo republicano Bush, Al Gore. A canção-tema do documentário, I Need to Wake Up (Preciso Acordar), que não é lá essas coisas, também foi premiada, dando à compositora e intérprete, Melissa Etheridge, outra lésbica assumida, a oportunidade de se referir à sua companheira como 'minha mulher' durante o agradecimento pela estatueta. Para completar, a escolhida para o prêmio humanitário Jean Hersholt foi Sherry Lansing, uma ex-atriz e ex-executiva da Paramount conhecida por suas ações em campanhas da Cruz Vermelha e de combate ao câncer.
Faz parte do espetáculo hollywoodiano, e também da concepção americana de vida, inserir em qualquer festa um chamado às massas para as causas nobres. Nada contra, mas o exagero incomoda. Um Oscar pelo conjunto da obra só faz sentido quando é concedido de forma honorária, e não por um filme qualquer. Charles Chaplin, Stanley Donen e o ator Peter O'Toole ganharam os seus dessa forma. No domingo foi a vez do compositor Ennio Morricone, que teve o discurso despojado e comovente, em italiano, traduzido por Clint Eastwood. A Academia faz com freqüência essa espécie de pedido de desculpas em público por erros cometidos no passado. Que, às vezes, são cabeludos. O'Toole, por exemplo, de novo candidato este ano, teve sua interpretação como o major T. E. Lawrence, em Lawrence da Arábia, clássico dirigido por David Lean, escolhida por críticos e colaboradores da prestigiosa revista americana Premiere, no ano passado, como a melhor de toda a história do cinema. No entanto, perdeu a estatueta de 1962 para Gregory Peck, de O Sol é para Todos (To Kill a Mockingbird), de Robert Mulligan. Além de galã um ótimo ator, Peck havia sido indicado antes quatro vezes sem levar o prêmio. Assim, levou o de 1962 pelo conjunto da obra, mesmo que seu trabalho como o advogado Atticus Finch não pudesse ser comparado à genial recriação de O'Toole para o torturado guerreiro inglês de terras árabes.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

As casas mais caras




O castelo de Updown Court e fachada e sala do Hala Ranch

A revista americana Forbes, famosa pela lista dos homens mais ricos do mundo, é uma publicação de negócios que, além de elaborar primorosos perfis sobre empresários e bilionários, ultimamente tem diversificado a área de cobertura em seu assunto predileto, o do bem-viver propiciado pelo dinheiro de sobra. Em sua mais recente edição, a revista faz um apanhado das casas mais caras do mundo.
A primeira da lista é o castelo de Updown Court, em Windlesham, Surrey, na Inglaterra. Com o exagero de 103 quartos e outras acomodações, cercados por 58 acres de jardins e uma floresta nativa, a propriedade consegue ser maior que o Palácio de Buckingham, residência da rainha, e vale 70,3 milhões de libras, ou 138 milhões de dólares.
A segunda é a mansão construída, em estilo rancho, pelo príncipe Bandar bin Sultan bin Abdul Aziz, ex-embaixador da Arábia Saudita nos Estados Unidos, no alto de uma montanha em Aspen, no Colorado. Com 15 quartos e 16 banheiros, num imenso terreno de 95 acres, o Starwood Ranch, ou Hala Ranch, está avaliado em 135 milhões de dólares.
Ambas logo serão rebaixadas no ranking porque o magnata americano do ramo de construções, Tim Blixseth, dono de uma fortuna pessoal avaliada em 1,2 bilhão de dólares, está erguendo uma mansão em madeira e pedra dentro do parque nacional de Yellowstone, no Colorado, para passar seus fins-de-semana. E aos possíveis interessados ele já avisa que poderá vendê-la por 155 milhões de dólares.
Haja dinheiro para comprar casas assim. E também para mantê-las, com seus numerosos empregados.



terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Na zona do agrião

O excelente crítico de cinema Luiz Zanin Oricchio, desde há alguns meses também titular de uma coluna sobre futebol no jornal O Estado de S. Paulo, lança a seguinte dúvida, a propósito da proximidade dos 1 000 gols do veterano atacante Romário: "Será que Romário foi melhor que Pagão, ídolo do Chico Buarque de Hollanda? Ou Coutinho, que até Pelé, talvez por gentileza (mas não estou muito certo disso), dizia ser o bambambã na área?"
O virtuose Pagão foi, de fato, um centro-avante de fina estirpe. Perseguido por seguidas contusões com suas canelas de vidro, foi mandado embora do Santos mas se vingou do ex-time jogando pelo São Paulo. Infernizou de tal modo a defesa adversária que o Santos precisou fugir da raia para não sofrer um vexame histórico. Quando o placar já estava em 4 a 1 para os inimigos, Pelé e companhia aproveitaram o fato de ter dois jogadores expulsos para simular contusões até reduzir o time a 7, obrigando o juiz a encerrar a partida antes do tempo. Não se permitiam substituições naquela época.
O sucessor do branquelo Pagão no Santos, um negrinho endiabrado que estreou ao lado de Pelé com apenas 15 anos de idade, foi no entanto melhor do que ele. Antônio Wilson Vieira Honório, o Coutinho, começou logo em sua primeira partida oficial com dois gols na vitória do Santos por 3 a 0 sobre o Vasco da Gama, no torneio Rio-São Paulo de 1958, para dizer a que viera. Ficaram famosas no mundo todo suas tabelinhas com o Rei, sempre em sentido vertical e com conclusões letais, ora dele, ora do companheiro. Ali, dentro da área, ou da zona do agrião, como dizia o cronista e técnico João Saldanha, este blogueiro nunca viu ninguém mais perfeito. Como não conheci o jogo de Heleno, Friedenreich, Feitiço, Teleco, Servílio e Leônidas da Silva, não posso afirmar que Coutinho foi o maior de todos. Mas certamente mais do que Romário ele foi, apesar de o baixinho ter sido considerado um gênio na área até por Johan Cruyff, o comandante de ataque da seleção holandesa, a Laranja Mecânica que encantou o mundo na década de 70.
Em meados dos anos 60, o Corinthians montou um time de respeito, com o mestre Dino Sani, que se projetara no São Paulo, como volante, e o então novato Rivelino, o maior jogador que já defendeu as cores do clube, como meia-armador. A torcida compareceu em peso aquela noite ao Pacaembu, confiante em que seu time acabaria com o tabu contra o Santos, que vinha desde 1957.
Iniciado o jogo, Pelé quase não conseguia andar no gramado, tal a marcação exercida sobre ele. Dino dava as cartas no meio-de-campo, secundado por Rivelino. Houve um lance magnífico, desses de ficarem registrados para a história. A bola caiu entre Pelé e Dino. O Rei investiu como um touro, bem ao seu feitio. Só que Dino chegou antes, e com um leve toque tentou dar um chapéu no adversário. Ao ver a bola cruzando sobre sua cabeça, Pelé ergueu as duas mãos, apanhou-a e ofereceu-a a Dino. Não foi só um gesto cavalheiresco. Houve majestade nele, de um rei que se recusava a ser humilhado. Quem imaginaria um lance com essa qualidade, hoje em dia?
Pois bem, mas o jogo seguia quente, com muita marcação de parte a parte. Sem espaço, Pelé esticou três passes para dentro da área. E Coutinho fez os três gols. Sentado no cimento ao fim da partida, enrolado na bandeira e a expressão perdida, o corintiano desolado com os 3 a 0 era a imagem da torcida derrotada mais uma vez pelo quase invencível Santos daquela época.
Coutinho era de uma frieza irritante diante do gol. Nunca dava um chutão, apenas colocava a bola com sutileza, longe do alcance do goleiro. Parecia enxergar brechas na defesa que ninguém mais via.
Uma contusão séria e malcurada no joelho, mais a tendência precoce para engordar, abreviaram sua carreira. Por isso, jogou pouco também na Seleção brasileira. Pelo Santos, disputou 457 partidas e marcou 370 gols. Encerrou a carreira com apenas 27 anos, no Saad, de São Caetano do Sul, município do ABC paulista, depois de sair do Santos e ter uma rápida passagem por outros times, como o Vitória, da Bahia, o Bangu, do Rio, e o Atlas, do México.
Salve, Coutinho.

Reparação moral

No Fórum de Leitores do jornal O Estado de S. Paulo de hoje, o leitor Romano Fabris escreve: "É por se levar a sério palavras como as da presidente do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie, no sentido de evitar a discussão da segurança sob o impacto de tragédias como a do assassinato do menino João Hélio, que nada se faz no Brasil, onde as tragédias são diárias e cada vez mais bestiais e aviltantes. Assim, estando sempre sob a influência de desgraças cada vez maiores, nada se discute, nada se decide, à espera de ocasião mais tranqüila, que, é óbvio, nunca virá. E os responsáveis, como a ministra, se perdem em tecnicalidades e discussões abstratas e acacianas sobre a idade ideal para se condenar alguém. Enquanto isso, nos países mais civilizados do mundo, se condenam menores de até 12 anos a longas penas por delitos até menos trágicos, ao passo que, aqui, assassinos brutais cumprem apenas um sexto de penas ridiculamente pequenas. Será que os bárbaros são eles?"
Está coberto de razão o leitor. A corte suprema e o Parlamento não devem, de fato, tomar decisões de afogadilho, pressionados por uma opinião pública que se mostra chocada pela bárbara execução de uma criança, arrastada do lado de fora de um carro por 14 ruas e 7 quilômetros no Rio de Janeiro. Um motorista que emparelhou seu automóvel com o dos assassinos, um deles menor de idade, para avisar que havia um corpo do lado de fora, ouviu do condutor do veículo roubado, de acordo com evidências Diego Nascimento da Silva, de 18 anos: "É um boneco de Judas". João Hélio Fernandes, o garoto trucidado, tinha 6 anos, idade da inocência até para futuros assaltantes, estupradores e homicidas.
Mas se a feitura de leis e a aplicação deles requerem equilíbrio, o argumento usado contra a redução da maioridade penal no Brasil é pífio. Todos, da ministra Ellen Gracie ao presidente do Senado, Renan Calheiros, do ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior ao presidente da OAB, Cezar Britto, passando pelo advogado Ricardo Cabezón, presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da mesma entidade, afirmam que a diminuição de 18 para 16 anos da idade-limite para a condenação por crimes "não resolve o problema". E cada qual acrescenta, a seu juízo, o que seria preciso mudar nas condições sociais, econômicas e educacionais do país para ajudar as leis a se tornarem mais eficientes.
Podem até estar certos, de um ponto de vista global e humanista. Mas diante de um crime como o cometido contra João Hélio o que a família quer, e também a sociedade, é muito mais uma reparação moral do que a resolução do problema para evitar a morte de outras crianças. Além do mais, uma melhora substancial nas condições sócio-econômicas no Brasil somente ocorrerá, e com otimismo, décadas adiante. Até lá, como agiremos: faremos algo ou manteremos os braços cruzados, porque a simples mudança da lei não resolve?
Atualmente, um menor infrator permanece no máximo três anos recluso na Febem, não importa o tipo de crime, se um roubo, um latrocínio ou uma execução cruel, como a de João Hélio e da adolescente Liana Friedenbach, de 16 anos, estuprada e degolada a golpes de facão em Embu-Guaçu, São Paulo, pelo menor 'Champinha'. Como paliativo, a Justiça tem decretado a permanência do menor em manicômios judiciários após os três anos prescritos na lei. Agora, a OAB e o Congresso se mostram dispostos a aumentar o prazo máximo para cinco anos, o que também não passa de um paliativo.
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, meninos de 12 anos já foram condenados à morte por assassinato. A pena capital continua em pleno vigor em vários estados americanos, e em certos países muçulmanos ela é aplicada, legalmente, pelos próprios familiares da vítima, de acordo com a Lei de Talião, 'olho por olho, dente por dente'. Seriam todos esses países bárbaros, e o Brasil o único civilizado? Por aqui, um assassino serial pode ser condenado a centenas de anos de prisão na soma dos crimes, mas a consolidação das penas reduz o tempo máximo de carceragem a 30 anos. E presos de boa conduta passam para o regime semi-aberto após cumprir apenas 1/6 da sentença condenatória. Nada de cadeira elétrica, injeção letal ou prisão perpétua. É o respeito servil aos direitos humanos – dos criminosos, não das vítimas.
A ambigüidade campeia. A população elege do presidente da República ao último dos vereadores, mesmo parte sendo analfabeta, e há gente do PT querendo eternizar Lula no Planalto por meio de um plebiscito com força constitucional. Mas ninguém leva adiante a idéia de convocar um referendo popular sobre a pena de morte. Obviamente, porque ela passará, contra toda a tradição católica do Brasil, a oposição da CNBB e da OAB e demais entidades e partidos políticos, a maioria de esquerda.

O azarão Obama


Obama em frente a uma estátua do Super-Homem: ele tem a força

Com a popularidade do atual presidente George W. Bush no fundo do poço, sobretudo por conta da desastrada intervenção militar no Iraque, o Partido Democrata tem grandes chances de voltar a ocupar a Casa Branca após as eleições do próximo ano. E com uma mulher, a primeira da história americana nesse cargo, a senadora Hillary Clinton, favorita disparada nas pesquisas.
Por tudo que precisou agüentar, sem perder a classe, durante e após o rumoroso caso de seu marido, o ex-presidente Bill Clinton, com a estagiária Monica Lewinski, e também por sua experiência, conhecimentos e simpatia, Hillary merece o favoritismo. Só que agora, no meio do caminho de uma futura indicação por seu partido, que parecia tranqüila, existe uma pedra. E ela se chama Barack Obama, o jovem senador negro, de 45 anos, pelo estado de Illinois. É extraordinário que na maior democracia do mundo o próximo presidente possa ser uma mulher ou um negro.
Há outros pré-candidatos pelo Partido Democrata, menos cotados: os veteranos senadores Joseph R. Biden, Jr., do Delaware, e Christopher John Dodd, de Connecticut; John Edwards, também senador, da Carolina do Norte, e candidato a vice na chapa democrata derrotada por Bush em 2004; o deputado federal Dennis Kucinich; os governadores de Iowa, Tom Vilsack, e do Novo México, Bill Richardson, este, um ex-secretário de Energia no governo Bill Clinton; e o ex-senador Mike (Maurice Robert) Gravel, o mais velho, de 77 anos. Nenhum deles deverá ser páreo para Hillary e Obama.
Carismático e articulado, Obama – que, por sinal, tem um 'Hussein' no seu nome completo, Barack Hussein Obama, Jr., para tormento de Bush – não é um militante das causas da raça. Já recebeu por isso não poucas críticas, tanto do movimento negro quanto de adversários brancos. Em 2000, quando concorria a uma cadeira na Câmara dos Representantes (Deputados), seu oponente, o republicano Bobby Rush, disse que ele "não era suficientemente negro" para merecer os votos de sua gente. Obama parece não dar importância a essas acusações, assim como para as mais recentes pesquisas, que indicam maciça preferência dos negros por Hillary, e não por ele.
Filho de pai africano, do Quênia, e mãe americana branca, do Kansas, que se conheceram num curso de extensão universitária em Honolulu, capital da ilha do Havaí, lá se casaram, geraram a criança e depois se divorciaram, o menino Obama foi criado pelos avós maternos e fez seus primeiros estudos na mesma ilha. O pai Obama foi para os Estados Unidos, onde se doutorou por Harvard, voltou para o Quênia e morreu num acidente de carro quando o filho tinha 21 anos. A mãe, Ann Dunham, morreu mais tarde, de câncer. Tinha-se casado de novo, agora com um indonésio, mantendo sua predileção pelas minorias.
Levado pelos avós para os Estados Unidos, Obama passou a adolescência em Chicago. Graduou-se em Ciência Política pela Universidade de Columbia, e depois em Direito, com louvor, por Harvard. Foi o primeiro presidente negro da prestigiosa Harvard Law Review, a revista de assuntos jurídicos da quase quadricentenária universidade. Abriu um escritório de advocacia para defender direitos civis e sempre trabalhou para os mais humildes, brancos ou negros. Eleito para o Senado estadual do Illinois, em 1996, e reeleito em 2002, elaborou leis que beneficiaram trabalhadores pobres com a devolução do Imposto de Renda, a ampliação do acesso ao sistema de seguro-saúde e a realização de campanhas preventivas contra a AIDS e o aumento da rede de assistência aos soropositivos. O único de seus projetos voltados especificamente para os negros foi o que fez instalar câmeras de vídeo nas salas de interrogatório policiais, para coibir a perseguição racial. Dá para ver, por esse currículo, que Obama é feito de outra extração, comparado ao atual presidente americano.
Casado com Michelle Robinson desde 1992, e pai de Malia, nascida em 1999, e Sasha, nascida em 2001, Obama se tornou conhecido no país ao ser eleito para o Senado americano em 2004, proferir um célebre discurso na convenção nacional de seu partido naquele ano e criticar seguidamente o governo, seja pela demora no atendimento das vítimas do furacão Katrina, seja pela campanha militar no Iraque. Sua pré-candidatura à Presidência dos Estados Unidos foi lançada no último sábado, no mesmo local (a antiga sede legislativa de Springfield, capital do estado de Illinois) em que Abraham Lincoln lançou a dele, em 1858. Obama, por enquanto, não passa de um azarão, mas que impõe respeito. Hillary que se cuide.
O cinema já mostrou um presidente americano negro, interpretado pelo grande ator Morgan Freeman, no filme Impacto Profundo (Deep Impact, de 1998). O que era mera ficção pode transformar-se em realidade, mais cedo do que se imaginava.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Os números do Enem


É lamentável que o Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, revele ano após ano a progressiva deterioração da qualidade de nosso ensino. Não foi diferente em 2006. Os números do provão, realizado pelo Ministério da Educação, MEC, em 27 de agosto, com uma participação recorde de cerca de 2,7 milhões de estudantes (de cerca de 3,7 milhões inscritos), mostram que de zero a 100 a média em redação caiu de 55,96 pontos no ano anterior para 52,08, e a média nas questões objetivas, de 39,41 para 36,90. Em termos relativos, isso significa que o grau de aprendizado escolar no país, englobados os ensinos fundamental e médio, piorou em apenas um ano 6,9% em redação e 6,4% nas questões objetivas. Diante da uniformidade dos critérios de avaliação adotados, mesmo que possa ter havido alguma diferença de interpretação por parte dos julgadores, trata-se de um dado preocupante. Que futuro se pode esperar de um país quando suas crianças dos cursos básico e secundário são reprovadas em massa num teste de conhecimentos objetivos e passam raspando num de manifestação escrita, ambos realizados em caráter oficial? E, se o provão fosse restrito às escolas públicas, o resultado seria ainda mais desastroso, porque todas as melhores notas ficaram com as instituições particulares.
À divulgação dos números na quarta-feira pelo MEC seguiu-se uma onda previsível de críticas à atual qualidade do ensino no país, formuladas por respeitáveis analistas. Um deles, o jornalista Rolf Kuntz, de O Estado de S. Paulo, compara com grande lucidez a superficialidade das prioridades econômicas adotadas no Brasil, ao largo de uma maior atenção para com a educação, e a política de longo prazo praticada pelos países emergentes da Ásia, inclusive a China, que tratam de formar capital humano para incorporar tecnologias e assim dar qualidade ao seu crescimento econômico. Sobre o nosso sistema de ensino, em particular, diz Kuntz: "Mas nenhum plano ou programa de aceleração do crescimento (referindo-se ao PAC) será completo sem uma boa estratégia de reforma educacional. O governo federal, no entanto, continua a agitar bandeiras muito mais vistosas do que eficazes. Promete a democratização do ensino superior, sem cuidar seriamente da formação básica dos estudantes e do fortalecimento do ensino médio. Mantém na pauta a distribuição de computadores baratos a escolas públicas, quando deveria cuidar muito mais de objetivos elementares, como o ensino de português, matemática e rudimentos de ciências. Enquanto essas tarefas continuam negligenciadas, o presidente anuncia triunfalmente a inclusão da história da África no currículo. É o terceiro-mundismo extravasando da política externa para a educação. O rumo é o Terceiro Mundo, não o terceiro milênio".
Nada haveria a acrescentar a essa brilhante análise, a não ser, talvez, uma pitada de sugestões sobre como melhorar os ensinos fundamental e médio no país. Quanto mais os brasileiros de boa cabeça e conhecedores do assunto, como Kuntz, que além de jornalista é professor universitário, e o senador Cristovam Buarque, que fez toda uma campanha presidencial pregando uma revolução pelo ensino, aliarem as críticas às sugestões, mais poderão ajudar a transformar a agenda da educação em questão prioritária no Brasil.
Os dados sócio-econômicos do Enem 2006 indicam que o desafio principal para melhorar a qualidade do ensino está em escapar de alguma forma ao cerco da pobreza. A renda familiar de 84,9% dos participantes do provão do ano passado que responderam a uma pesquisa feita pelo MEC é de apenas um a cinco salários mínimos. Isso significa que quase nove entre dez estudantes pertencem a famílias cujos ganhos somados de seus membros atingem, no máximo, 1 750 reais por mês. Mais 8,8% situam-se na faixa de cinco a dez mínimos e 1,6% declararam não ter rendimento nenhum.
Quando a batalha diuturna pela sobrevivência se impõe a todas as outras necessidades, não se pode esperar que o ensino dado na escola seja complementado nos lares, entre outros fatores pela falta de tempo dos pais. Ainda hoje, na zona rural, muitos deles só concordam em manter os estudos dos filhos se estes puderem ajudar na roça ao menos por meio período. E, nas cidades, a maioria dos pais consegue falar com os filhos apenas nos fins de semana, porque em dia de batente saem para o trabalho antes da luz do sol e voltam para casa noite alta. Assim, o escasso complemento de ensino, se há, é dado pelas mães, quando não trabalham fora ou não têm prole excessivamente numerosa. Por falar nisso, até entre os próprios estudantes revela-se o hábito de cedo procriar. Quase 16% (15,8%), casados ou não, já têm filhos, alguns (1%), até quatro ou mais.
Em tais condições, obviamente, o primeiro requisito para se poder melhorar a qualidade do ensino no Brasil, nos níveis fundamental e médio, está em aumentar o tempo de permanência na escola, e aí entra o papel do governo. Se a família não tem como sustentar, o remédio é subsidiar. É preciso gastar muito mais dinheiro também com a formação dos professores e a melhora das instalações do estabelecimento de ensino. E completar o processo com a atualização do currículo e a modernização pedagógica, porque está provado que a criança aprende mais quando participa da aula, ao invés de limitar-se a ouvir e copiar.
Para surpresa de muitos, a escola classificada em primeiro lugar no Enem 2006 fica no Piauí, o mais pobre estado brasileiro. Trata-se do Instituto Dom Barreto (brasão acima, no início do texto), de Teresina, que obteve a média geral de 74,17 pontos, a melhor do país, e deixou em segundo plano os afamados colégios Vértice (segundo colocado, com 74,12) e Bandeirantes (sexto, com 70,84), de São Paulo, e os dois Santo Agostinho do Rio de Janeiro, o do centro da cidade (terceiro lugar, com 72,31) e o da Barra da Tijuca (quinto, com 71,71). O Dom Barreto é um colégio particular fundado em novembro de 1943 por oito missionárias católicas e até hoje se mantém como uma entidade filantrópica, sem objetivo de lucro. Como ele, na lista das 20 melhores escolas do Enem 2006 há várias outras de cunho ou origem religiosos, nas quais as aulas são ministradas por mais horas do que as regulamentares. O tempo de permanência e o ensino levado a sério, portanto, fazem diferença. E os piauienses estão de parabéns, porque um povo que cuida da educação jamais se condena ao atraso e à pobreza.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Futebol sem ídolos

Os garotos colecionavam figurinhas de seus times, encontradas em balas, e trocavam as sobras com os amigos em disputas de pife-pafe. Os dicionários registram esse nome como o de um jogo de baralho semelhante ao buraco e à cacheta, mas nas calçadas daquele tempo os meninos desafiavam "Pife!", e os colegas respondiam "Pafe!", batendo com a palma da mão no monte de figurinhas e ganhando as que conseguiam virar do avesso.
Muitos sabiam de cor a escalação completa do time para o qual torciam. Paixões clubísticas se formavam entre os pequenos e depois se consolidavam na adolescência por causa dos ídolos. Boa parte da atual torcida do Santos nasceu na era Pelé, que começou em meados dos anos 50, atravessou os 60 e invadiu os 70. No Corinthians, o goleiro Gilmar, o meia Luizinho e o centro-avante Baltazar, campeões do quarto centenário da cidade de São Paulo em 1954, o meia Rivelino (na época seu nome era grafado com um 'l'), de meados da década de 60 até 1974, o fatídico ano em que o time perdeu uma decisão de campeonato para o arqui-rival Palmeiras, e o atacante Sócrates, entre fins de 70 e parte dos anos 80, também formaram legiões de torcedores.
Bons tempos, enterrados para sempre pela Lei Pelé e seu complemento, a extinção da antiga Lei do Passe. Muito antes de ser ministro de governo e assim poder bancar a mudança na legislação, o rei do futebol já havia dito: "O jogador é um escravo". Referia-se às dificuldades dos profissionais da bola de se livrarem do vínculo com o clube. Com o passe na mão este impunha sua vontade, seja nas condições de trabalho, seja na renovação dos contratos.
Hoje os jogadores, os mais famosos principalmente, deixaram de ser escravos para se tornar mercenários. Correm atrás mais do dinheiro do que da bola. Amor à camisa virou papo para boi dormir, com raras exceções. Duas delas são os goleiros Marcos, do Palmeiras, e Rogério Ceni, do São Paulo. Estes, pode-se afirmar, merecem busto à entrada do estádio. Já os demais... bem, esses não têm sequer como fazer parte de álbuns de figurinhas, se os meninos ainda tivessem o hábito de colecioná-los.
O veterano centro-avante Cristian ficou só um mês no Corinthians. O novato lateral direito Fagner, ainda outro dia na categoria juvenil, nem se apresentou ao clube depois do Sub-20 disputado pela seleção brasileira. Foi para o PSV holandês, com um contrato de cinco anos, e não deu satisfações. O lateral esquerdo Gustavo Nery foi outro que sumiu: simplesmente abandonou o emprego por não gostar do técnico, Leão. E vai por aí afora. Todos cuidam dos próprios interesses, com seus empresários e advogados. Não estão nem aí para os marmanjos e garotinhos das arquibancadas.
Existe hoje um divórcio irremediável nos campos de futebol, entre a paixão dos torcedores e o pragmatismo dos jogadores. Assim, os ídolos vão desaparecendo, alguns porque se transferem para o exterior em busca dos dólares, a maioria porque troca de clube como político que muda de partido, à cata de migalhas. Jovens promessas não se firmam porque bastam alguns jogos bem disputados para ter a praga dos empresários, na verdade agenciadores baratos atrás de dinheiro fácil, batendo à porta, prometendo-lhes mundos e fundos em algum clube estrangeiro, qualquer que seja. Por falar nisso, os argentinos Tevez e Mascherano não devem estar muito felizes por terem trocado o calor da nação corintiana pela frieza do país e do clube inglês cujo nome, traduzido literalmente, é 'Presunto do Oeste'. Mas eles que se danem, já que também mandaram uma banana para o glorioso alvinegro do Parque São Jorge.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Desenhos que são pinturas



A morte de Abel por Caim e cena de Londres
Gustave Doré, nascido em Estrasburgo, na fronteira da França com a Alemanha, em 6 de janeiro de 1832, filho de um engenheiro construtor de pontes, e morto em Paris em 23 de janeiro de 1883, aos 51 anos, foi talvez o mais extraordinário dos ilustradores de qualquer tempo e qualquer lugar. Dono de prodigioso talento, a ponto de publicar quatro litogravuras aos 13 anos e de ser contratado como chargista por um jornal parisiense aos 15, produziu grande quantidade de desenhos, gravuras, pinturas e esculturas, tendo ilustrado mais de 200 obras literárias em sua curta vida.
Escritores e poetas como Rabelais (O Gigante Gargântua), Ariosto (Orlando, o Furioso), Balzac (Contos), Dante (A Divina Comédia), Cervantes (Dom Quixote), Milton (O Paraíso Perdido), e Poe (O Corvo) tiveram seus textos enriquecidos pelo traço magistral de Doré, que ora desenhava as imagens a bico de pena, ora as gravava em madeira para reproduzi-las nas edições. Freqüentemente citado pelas ilustrações do paraíso, do inferno e do purgatório que fez para A Divina Comédia, a obra de Dante lhe exigiu trabalho mais pelas minúcias contidas em cada imagem do que, propriamente, pela quantidade de desenhos. No total, foram 136 as ilustrações feitas por ele para os poemas do genial italiano, lidos em tradução por não conhecer a língua original do livro. Bem menos que as 377 de Dom Quixote ou as 248 das Fábulas de La Fontaine, portanto.
Uma edição inglesa de luxo da Bíblia, de 1865, também lhe exigiu ilustrações de elaboração detalhada, como se pode ver pelo exemplo acima, criação do artista para reproduzir a morte de Abel pelas mãos de seu irmão, Caim. Já o desenho de baixo mostra as impressões de viagem para uma Londres de muitas fábricas, em plena revolução industrial. O desenho Sobre Londres, por Trilho, é de 1870.


De barriga cheia

Há muito de desfaçatez na polêmica entre parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal acerca de seus salários. O ministro Marco Aurélio Mello reagiu a críticas do novo presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), aos ganhos dos membros da corte com um desafio: propôs trocar o seu salário pelo dos parlamentares, acrescido das mordomias que estes recebem.
Entre salário e vantagens como verbas de gabinete e auxílio-moradia cada parlamentar recebe hoje, segundo o ministro, em torno de 70 000 reais por mês. "Eu ganho 24 500 reais", declarou Mello, de acordo com uma reportagem de hoje do jornal O Estado de S. Paulo. "Mas tenho um sócio que é o próprio Estado e aí o meu líquido está em torno de 17 000 reais." Propôs ainda trocar sua carga de trabalho pela dos deputados e senadores. "Que eles assumam os 12 000 processos que conduzo no Supremo e eu assumo o trabalho deles, de três dias da semana, de terça a quinta-feira."
Ao saber das afirmações feitas por Mello, parlamentares da situação e da oposição saíram em defesa da própria categoria. Um deles, o líder do PR, Luciano Castro (RR), alegou que a verba de gabinete, de 50 000 reais por mês, é recebida para pagar funcionários. E lembrou que seu cargo não é vitalício, ao contrário do que ocorre no STF. Outro, o senador Gilvan Borges (PMDB-AP), choramingou que vive no vermelho por ter um salário líquido reduzido a 11 000 reais. Nenhum deles, contudo, respondeu à proposta de Mello de trocar a carga de trabalho.
O ministro Marco Aurélio Mello, que já presidiu o STF, é normalmente um homem sensato, mas desta vez esqueceu-se de fazer uma ressalva. Poderia ter dito que ganha muito em comparação com a grande maioria dos brasileiros, mas não em relação aos parlamentares, em vez de simplesmente revelar o seu salário e lamentar os descontos no contracheque, que também atingem trabalhadores cujos holerites não passam de uma fração do dele. Nunca é demais lembrar que o salário mínimo no Brasil, hoje, é de 350 reais. O ministro ganha 70 vezes isso todo mês, ou, para dramatizar um pouco, o que é pago, em troca de muito suor, a 70 chefes de família no país. Quanto aos parlamentares, empenhados em forçar o STF a aprovar o absurdo aumento por eles pretendido, de 91% nos salários, em nome da isonomia entre os poderes – esquecidos de que na Constituição os ganhos no Supremo estão dispostos como um teto, e não como um piso -, não merecem ter seus argumentos comentados com isenção de espírito. Não só porque, de fato, ganham muito mais que os ministros do STF, com suas verbas variadas, como também porque não trabalham.
No clamor da refrega ouviu-se uma solitária voz da razão, a do senador Jefferson Péres, do PDT do Amazonas. "Temos regalias e privilégios que os ministros do Supremo não têm", reconheceu o senador, citando como exemplo a verba indenizatória de 15 000 reais recebida por deputados e senadores para custear as despesas do cargo em seus estados. Um político exemplar, assim como seu colega de partido Cristovam Buarque, do Distrito Federal, Péres caracterizou-se como um oposicionista combativo. Ele parece, assim, um estranho no ninho num PDT que acaba de aderir, de mala e cuia, às hostes do governo.

O Estado é o problema

"Por que não avançamos do atraso para uma modernização que não chega nunca? Quando nossos dias melhores virão? Durante o governo de FHC, estávamos às portas de uma modernização político-econômica, prontos para uma revolução administrativa e conceitual, mas chegaram populistas boçais e bolchevistas tardios que, numa aliança louca com a velha direita patrimonialista, seguraram a transformação e voltaram a adorar o bezerro de ouro do Estado.
E assim vamos. Acabamos de ver, perplexos, o rabo da lagartixa do atraso se recompondo, a volta de todos os canalhas denunciados nos escândalos, a retomada de todos os vícios da legislatura passada, sob a arrogância populista do presidente negando o óbvio - que a Previdência não tem déficit e poderá gastar sem cortes. Como disse Dora Kramer, 'Lula será elogiado pelos acertos que não fez (Plano Real) e não será cobrado pelos erros que vai fazer agora, que serão empurrados para seu sucessor. Não adianta: povo ignorante e intelectuais idiotas não entendem que o Estado não é a solução; é o problema. Ninguém entende que o Estado não é a cura, mas a doença. Um país clamando por modernidade vive dramaticamente preso a um imaginário político arcaico e ridículo."

(Arnaldo Jabor, em sua crônica de hoje nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Com o pé esquerdo

"Arlindo Chinaglia condensa o que há de pior no PT", afirma no seu artigo de ontem do jornal O Estado de S. Paulo o escritor e jornalista Gilberto de Mello Kujawski, membro do Instituto Brasileiro de Filosofia. E o que seria esse pior? Segundo Kujawski, "o anacronismo político econômico e social fantasiado de progressismo; a prepotência da opinião, arrogante e massacrante; a mistificação de que os fins justificam os meios; a ambição cega do poder pelo poder, sem nenhuma proposta consistente e construtiva em benefício do país; o aparelhamento geral e irrestrito do governo como 'cosa nostra' do partido; a manipulação inescrupulosa da opinião pública mediante a mentira, a invencionice, a demagogia deslavada; a condescendência injustificável com a corrupção e os escândalos de mensaleiros e sanguessugas, os quais pretende inocentar e trazer de volta ao poder".
"Caviloso, maquiavélico, arrogante", prossegue Kujawski, "se eleito, a primeira coisa que vai fazer será preparar a anistia de José Dirceu, sem sombra de dúvida o homem mais perigoso do Brasil. Suas companhias são de assustar: além de Dirceu, João Paulo Cunha, Professor Luizinho, José Mentor, Valdemar Costa Neto, Severino Cavalcanti, Bruno Maranhão (o invasor da Câmara) e Paulo Maluf."
Ao irrefutável artigo de Kujawski caberia acrescentar, talvez, a informação de que Arlindo Chinaglia fez da promessa de lutar pelo ignominioso aumento de 91% proposto para os parlamentares a principal bandeira de sua campanha.
Pois bem. Com tudo isso, Chinaglia foi eleito ontem o novo presidente da Câmara de Deputados do Brasil, ao derrotar em segundo turno o outro candidato governista, o então presidente da casa Aldo Rebelo, do PCdoB, por 261 votos contra 243. No primeiro turno, quando concorreu também com o oposicionista Gustavo Fruet, do PSDB, obteve 236 votos, contra 175 dados a Rebelo e 98 ao deputado paranaense da oposição. Um pouco antes, no Senado Federal, a disputa já se definira em favor do também aliado incondicional do governo Renan Calheiros, do PMDB alagoano, reeleito por 51 votos a 28, ao derrotar o oposicionista José Agripino, do PFL do Rio Grande do Norte.
O Congresso Nacional, já se ouviu dizer várias vezes, é uma caixa de ressonância da opinião pública prevalecente em questões políticas no país. O resultado das eleições para as presidências da Câmara e do Senado só confirma essa afirmação. Assim como ocorreu na escolha do presidente da República, os piores candidatos venceram. Pelé, afinal, estava certo quando disse que os brasileiros não sabiam votar. Os interesses corporativistas que amesquinham nosso Congresso e o populismo barato que condena nosso povo ao atraso passam como rolos compressores sobre qualquer discurso pelo resgate da ética e da dignidade na política nacional, e o resultado é apresentado como a manifestação da voz das ruas em nossa democracia. Seria ridículo se não fosse trágico, mas é assim mesmo que a maioria dos brasileiros decide sobre o seu futuro. As urnas não mentem.
E lá vamos nós para mais quatro anos do mesmo na nova legislatura da Câmara, iniciada ontem com a posse dos deputados eleitos ou reeleitos, vários deles da turma dos sanguessugas e dos mensaleiros. Se havia alguma esperança de recuperação da desgastada imagem da casa ela se desvaneceu logo no primeiro dia, porque a maioria dos empossados já começou votando no bilioso deputado petista de São Paulo para seu presidente.
Com o blocão de oito partidos formado para apoiar Chinaglia (PT, PMDB, PP, PR, PTB, PSC, PTC e PTdoB), mais o bloquinho de cinco que fechou com Rebelo (PSB, PDT e PCdoB, além dos minúsculos PAN e PMN), o governo Lula conta hoje com nada menos de 341 deputados para aprovar o que quiser na Câmara, de simples decretos e medidas provisórias a emendas constitucionais. A oposição, pobre dela, e também do país, está reduzida a apenas três partidos: PSDB, PFL e PSP. Assim como Hugo Chávez na Venezuela, portanto, Lula pode até governar por decretos, já que o Congresso no Brasil não serve para mais nada a não ser dizer amém ao Executivo. Sendo assim, por que não concordar logo com os 91% de aumento para os deputados e senadores, para torná-los os mais bem pagos do mundo? Afinal, não faz bem ao nosso ego sermos os maiorais, pelo menos em alguma coisa?