terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Na zona do agrião

O excelente crítico de cinema Luiz Zanin Oricchio, desde há alguns meses também titular de uma coluna sobre futebol no jornal O Estado de S. Paulo, lança a seguinte dúvida, a propósito da proximidade dos 1 000 gols do veterano atacante Romário: "Será que Romário foi melhor que Pagão, ídolo do Chico Buarque de Hollanda? Ou Coutinho, que até Pelé, talvez por gentileza (mas não estou muito certo disso), dizia ser o bambambã na área?"
O virtuose Pagão foi, de fato, um centro-avante de fina estirpe. Perseguido por seguidas contusões com suas canelas de vidro, foi mandado embora do Santos mas se vingou do ex-time jogando pelo São Paulo. Infernizou de tal modo a defesa adversária que o Santos precisou fugir da raia para não sofrer um vexame histórico. Quando o placar já estava em 4 a 1 para os inimigos, Pelé e companhia aproveitaram o fato de ter dois jogadores expulsos para simular contusões até reduzir o time a 7, obrigando o juiz a encerrar a partida antes do tempo. Não se permitiam substituições naquela época.
O sucessor do branquelo Pagão no Santos, um negrinho endiabrado que estreou ao lado de Pelé com apenas 15 anos de idade, foi no entanto melhor do que ele. Antônio Wilson Vieira Honório, o Coutinho, começou logo em sua primeira partida oficial com dois gols na vitória do Santos por 3 a 0 sobre o Vasco da Gama, no torneio Rio-São Paulo de 1958, para dizer a que viera. Ficaram famosas no mundo todo suas tabelinhas com o Rei, sempre em sentido vertical e com conclusões letais, ora dele, ora do companheiro. Ali, dentro da área, ou da zona do agrião, como dizia o cronista e técnico João Saldanha, este blogueiro nunca viu ninguém mais perfeito. Como não conheci o jogo de Heleno, Friedenreich, Feitiço, Teleco, Servílio e Leônidas da Silva, não posso afirmar que Coutinho foi o maior de todos. Mas certamente mais do que Romário ele foi, apesar de o baixinho ter sido considerado um gênio na área até por Johan Cruyff, o comandante de ataque da seleção holandesa, a Laranja Mecânica que encantou o mundo na década de 70.
Em meados dos anos 60, o Corinthians montou um time de respeito, com o mestre Dino Sani, que se projetara no São Paulo, como volante, e o então novato Rivelino, o maior jogador que já defendeu as cores do clube, como meia-armador. A torcida compareceu em peso aquela noite ao Pacaembu, confiante em que seu time acabaria com o tabu contra o Santos, que vinha desde 1957.
Iniciado o jogo, Pelé quase não conseguia andar no gramado, tal a marcação exercida sobre ele. Dino dava as cartas no meio-de-campo, secundado por Rivelino. Houve um lance magnífico, desses de ficarem registrados para a história. A bola caiu entre Pelé e Dino. O Rei investiu como um touro, bem ao seu feitio. Só que Dino chegou antes, e com um leve toque tentou dar um chapéu no adversário. Ao ver a bola cruzando sobre sua cabeça, Pelé ergueu as duas mãos, apanhou-a e ofereceu-a a Dino. Não foi só um gesto cavalheiresco. Houve majestade nele, de um rei que se recusava a ser humilhado. Quem imaginaria um lance com essa qualidade, hoje em dia?
Pois bem, mas o jogo seguia quente, com muita marcação de parte a parte. Sem espaço, Pelé esticou três passes para dentro da área. E Coutinho fez os três gols. Sentado no cimento ao fim da partida, enrolado na bandeira e a expressão perdida, o corintiano desolado com os 3 a 0 era a imagem da torcida derrotada mais uma vez pelo quase invencível Santos daquela época.
Coutinho era de uma frieza irritante diante do gol. Nunca dava um chutão, apenas colocava a bola com sutileza, longe do alcance do goleiro. Parecia enxergar brechas na defesa que ninguém mais via.
Uma contusão séria e malcurada no joelho, mais a tendência precoce para engordar, abreviaram sua carreira. Por isso, jogou pouco também na Seleção brasileira. Pelo Santos, disputou 457 partidas e marcou 370 gols. Encerrou a carreira com apenas 27 anos, no Saad, de São Caetano do Sul, município do ABC paulista, depois de sair do Santos e ter uma rápida passagem por outros times, como o Vitória, da Bahia, o Bangu, do Rio, e o Atlas, do México.
Salve, Coutinho.

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