terça-feira, 29 de julho de 2008

Mulheres-bombas

A primeira imagem que surge, quando se pensa no papel da mulher na história da humanidade, é a da loba que segundo a lenda amamentou e acabou de criar os irmãos Rômulo e Remo, fundadores de Roma no ano 753 AC. Os gêmeos, concebidos pela vestal Réia Sílvia, depois de seduzida pelo deus romano da guerra, Marte, também chamado de Ares, foram abandonados numa cesta no rio Tibre, tal como acontecera séculos antes com o menino Moisés no rio Nilo, no Egito, de acordo com o Antigo Testamento.

Tanto no caso de Moisés quanto no dos gêmeos, suas mães agiram como protetoras dos filhos ao implorar por suas vidas, conseguindo dos tios usurpadores de trono – na história de Roma foi Amúlio, que depôs e aprisionou seu irmão Numitor, pai de Réia Sílvia e legítimo rei – que eles fossem colocados num cesto de vime correnteza abaixo, em lugar de ser mortos pela espada. O mesmo instinto protetor teve a loba que recolheu os meninos do rio e os amamentou, não se importando em dividir o alimento de seus filhotes. E assim tem sido sempre, as mulheres defendendo a vida, em nome da preservação da espécie, os homens a atacando, em nome de glórias militares, riqueza ou poder. Mesmo Rômulo, repetindo Caim, matou o irmão Remo porque este queria fundar a nova cidade em local diferente – o monte Aventino – do escolhido por ele, o monte Palatino.

O homem que não pensa duas vezes antes de destruir é o mesmo que construiu a moderna civilização, mas nisso ele teve a ajuda decisiva da mulher. Mais do que limitar-se a cuidar da prole enquanto o marido estava nas guerras, e entre uma e outra campanha gerar e carregar no ventre um novo filho, a mulher sempre foi o elemento fundamental a impulsionar o homem na tarefa não só da reconstrução, mas da busca de um mundo melhor para todos pelo invento e pelo trabalho. Teria sido impossível para ele conquistar seus objetivos, seja em tempos de guerra, seja na paz, se não contasse com o apoio e a solidariedade da mulher que, ainda por cima, resolvia os problemas domésticos para ele poder se ocupar apenas de seus afazares.

Algumas fizeram até mais do que isso, como Madame Curie. Ao casar-se com um dos dois irmãos Curie, famosos físicos franceses, Pierre, a polonesa Marya Salomee Skodowska quis ser chamada assim, Madame Curie, pelo resto da vida. Com Pierre, trabalhando num modesto laboratório com chão de barro, ela descobriu o elemento químico do rádio. Duas vezes premiada com o Nobel, uma em 1903 em física, e outra em 1911 em química, quando a França entrou na Primeira Guerra, contra a Alemanha, ofereceu essas medalhas, e mais a que Pierre também ganhara em 1903, para serem refundidas e usadas como ouro para o custeio das despesas do país. O marido, antes de morrer atropelado por um coche, em 1906, chegou a recusar a Legião de Honra da França. “Não tenho absolutamente necessidade de ser condecorado, e sim de dispor de um laboratório”, respondeu Pierre à indicação para a honraria, a mais alta daquele país. Madame Curie foi uma companheira à altura. O raio-X, descoberto por eles, já estava sendo empregado no tratamento dos soldados feridos, com o equipamento montado em camionetes Renault. E, quando faltava motorista, lá ia Madame Curie para a frente de batalha, dirigindo uma dessas viaturas. Grande mulher, dedicada de corpo e alma às causas do país que adotara. Mesmo assim, quando anos depois da morte de Pierre ela se envolveu com o físico e matemático Paul Langevin, discípulo de seu ex-marido e homem casado, o populacho se reuniu na frente de seu modesto laboratório para chamá-la de adúltera e estrangeira. Que culpa poderia ter Madame Curie por agir como uma simples mulher, dotada de sentimentos além do cérebro privilegiado? Das duas filhas que teve com Pierre, Irène seguiu seus passos e foi também uma luminar da física, junto com o marido, Jean Frédéric Joliot, com quem descobriu os princípios da radioatividade artificial, base para o posterior desenvolvimento da fissão nuclear. E Eve se tornou sua biógrafa amorosa.

Perdoem-me os leitores do blog pela erudição de almanaque, mas é que não resisti a contar tais histórias depois de ler, no Estadão de hoje, que 70 pessoas morreram e 300 ficaram feridas pela ação suicida de três mulheres, que se infiltraram entre a multidão de peregrinos xiitas, em Bagdá e Kirkuk, no Iraque, para explodir as bombas amarradas ao corpo.

Como puderam, representantes do gênero que mais importou para a humanidade deixar as cavernas, trocar a vida pela morte? Seria uma demonstração de que no mundo de hoje nem conceitos arraigados em milênios resistem às pressões contrárias, nascidas ora do afrouxamento dos costumes, ora da manifestação ensandecida do ódio represado por facções religiosas ou políticas? Ou seriam, tão-somente, mulheres agindo para agradar a seus homens, ajudando-os na cama, na mesa, na casa e no trabalho, como sempre fizeram?

Difícil escolher uma resposta. Mas se é a última a verdadeira, então joguemos as maiores pedras nos homens que têm a covardia de mandar mulheres em seu lugar para fazer o serviço sujo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mário, texto delicioso, como de costume. Só alguém tão sensível como você conseguiria fazer uma reflexão tão especial. Lendo seu texto fico a pensar: se as mulheres perderem este senso de preservação da espécie que futuro nos espera?
Mara