Existe uma categoria especial de jornalistas que se especializaram em memorabilia, termo latino que significa, literalmente, ‘coisas que valem ser lembradas’. Desse escasso e ilustre grupo, constituído por jornalistas-autores como Ruy Castro e Aluízio Falcão, que escrevem principalmente em veículos da imprensa, e Fernando Morais, que se dedica a resgatar fatos e personagens da história recente do Brasil em seus livros, venho acompanhando com especial interesse há vários anos, mais por afinidade pessoal com os assuntos abordados, os textos de Sérgio Augusto (não confundir com o homônimo mais jovem, também muito bom).
O carioca Sérgio Augusto, nascido em 1942, começou sua carreira aos 18 anos na Tribuna da Imprensa, como crítico de cinema. Trabalhou também no extinto Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, nas revistas O Cruzeiro, Fatos & Fatos e Veja, entre outras, fez parte da equipe que fundou o tablóide O Pasquim, passou pela Folha de S. Paulo e hoje escreve no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. O mínimo que se pode dizer dele é que se trata de alguém dotado não só de um saber enciclopédico em matéria de cinema, música e literatura, principalmente, como também da capacidade de cativar os leitores com seus escritos, ao mesmo tempo primorosos e amigáveis. Não sei se exagero, mas essa é uma qualidade que me parece estar mais concentrada na imprensa carioca, talvez pela tradição de investir em grandes cronistas, de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade a Carlinhos de Oliveira, passando por Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Foi lá, também, que Armando Nogueira enobreceu como ninguém a crônica esportiva do país, na coluna Na Grande Área, mantida por mais de uma década no Jornal do Brasil. Não se pode esquecer ainda que também foi lá que nosso maior escritor, Machado de Assis, publicou suas crônicas, em fins do século 19.
Bem, tudo isso vem a propósito da homenagem que Sérgio Augusto faz hoje, no Caderno 2 do Estadão, à cantora americana Jo Stafford, falecida na semana passada, aos 90 anos. Um jornalista menos preparado se limitaria a um necrológio com algumas frases entre aspas a respeito da cantora. Das mãos de Augusto, ao contrário, surge todo um painel de época, misturado a considerações que ele faz sobre a grande música americana da primeira metade do século passado até o início dos anos 60, que foi o período no qual Jo Stafford reinou, sobretudo durante a guerra, como uma cantora que personificava as garotas que os pracinhas deixaram na terra. Por sinal, embora Augusto não faça menção, nas fotos que ilustram o texto há um outro ícone da época, a atriz Betty Grable com suas pernas sensuais e o traseiro fornido que os soldados guardavam na porta do armário, nos alojamentos, além dos atores James Stewart e Clark Gable em uniformes militares.
Um detalhe que não me passou em branco, no texto, é que Jo Stafford e seu então marido, o maestro e arranjador Paul Weston, criaram uma gravadora própria, chamada Corinthian Records. Augusto não esclarece o motivo da escolha do nome, mas é possível que ele tenha sintetizado para Jo e Weston os objetivos de expansão da gravadora ao referir-se à cidade de Corinto, da Grécia Antiga. Corinto rivalizou com Atenas e Esparta em poderio econômico, assim como no domínio das artes e dos esportes, tendo servido de sede para os Jogos Ístmicos, promovidos à mesma época do surgimento das atuais Olimpíadas, na cidade de Olimpo, por volta de 2 500 AC.
Como sabem os corintianos, e também os despeitados palmeirenses e sãopaulinos, sem a mesma carga de história e tradição no nome, o Corinthian (sem o ‘s’ final) inglês – que fazia a mesma homenagem aos gregos de Corinto e, ao que consta, sobrevive até hoje, numa divisão inferior do futebol do Reino Unido – andou por aqui, no início do século passado, aplicando uma surra em times paulistas e inspirando a criação do homônimo e glorioso alvinegro do Parque São Jorge, em 1910.
Outro detalhe que me chamou a atenção no texto de Augusto é o entusiasmo com que ele se refere às facilidades oferecidas pelo site YouTube. Como já disse o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que na década de 60 trabalhou no jornal Última Hora e na histórica revista Realidade, da Editora Abril, ao lado de Roberto Freire, Sérgio de Souza e Paulo Patarra, "a tecnologia não dá o talento, mas ajuda a quem o tem". De fato, deve ser uma delícia para Augusto poder dividir o prazer de ouvir e ver Jo Stafford com os leitores, bastando indicar, para tanto, uma visita ao YouTube.
Aceitei o convite. E selecionei para o blog esta preciosidade de vídeo (clique aqui), na qual a afinadíssima Jo divide o canto com outra lenda da canção americana, Ella Fitzgerald, acompanhada por um conjunto liderado por dois dos maiores nomes da era das big bands, Harry James, com seu trompete, e Benny Goodman, com sua clarineta. O vídeo é longo, mas vale vê-lo até o final apoteótico, com Jo e Ella cantando juntas. Uma observação final, vê-se logo que de um leigo no assunto: como podia Ella não perder o tom quando James soprava o trompete tão perto de sua orelha?
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