sexta-feira, 8 de agosto de 2008
De vírgulas e hífens
Se erros ortográficos são evitados com o uso de dicionários eletrônicos, os de gramática e pontuação escapam. Um revisor atento poderia, por exemplo, livrar a coluna de hoje do escritor Ignácio de Loyola Brandão, no jornal O Estado de S. Paulo, da vírgula indevida neste trecho: “Um estudante que veio me entrevistar, perguntava e olhava para as estantes”. Para estar correta, ela precisaria da companhia de outra vírgula depois da palavra ‘estudante’. Isolada, separou o sujeito da oração do verbo. A oração também poderia não ter vírgula nenhuma, embora assim talvez se ressentisse da falta de pausa, necessária à clareza.
Cometido ou não apenas por descuido do autor da coluna, um erro de pontuação sempre incomoda. E dizer que vírgula é mais uma questão de respiração não passa de disparate.
Muitas vezes, um erro de pontuação pode alterar o sentido de uma frase. Nunca me esqueci da lição recebida de uma professora de latim, no ginásio. Quando se preparava para sua grande campanha, na qual conquistou a maior parte do mundo que se conhecia na época, contou ela, Alexandre Magno enviou seus generais aos oráculos, porque queria saber se teria êxito. Os oráculos transmitiram aos generais quatro palavras isoladas: ‘irás’, ‘voltarás’, ‘não’ e ‘morrerás’. Solertes, os generais levaram a Alexandre a mensagem como a entenderam: “irás, voltarás, não morrerás”.
Confiante, Alexandre partiu, com o vigor dos 20 anos recém-completados. Derrotou o poderoso exército persa de Dario, além de outros inimigos, e anexou ao pequenino reinado da Macedônia, de onde partira, todos os territórios ao norte, nordeste e leste, até os limites da atual China. Mas morreu pouco antes de completar 33 anos, depois de mais de 12 em campanha ininterrupta, no ano 323 AC - não em batalha e sim com sinais de envenenamento, ao que se diz por obra da mulher, Roxana, inconformada por Alexandre querer deixá-la por uma princesa oriental, filha de Dario.
De volta à Macedônia, os generais foram cobrar os oráculos. Como puderam eles passar uma mensagem tão errada, de que Alexandre não morreria, se tinham ouvido os deuses? Então, os oráculos lhes responderam: “Não, vocês é que se enganaram. Vocês leram a mensagem assim: irás, voltarás, não morrerás. Mas na verdade ela dizia: Irás. Voltarás? Não. Morrerás”.
Ou seja, faltou um revisor para ajudar os generais. Se houvesse uma vírgula depois da negativa, provavelmente teriam interpretado a mensagem de outro modo, como queriam os oráculos.
Como escritor, e dos bons, Brandão sabe usar vírgulas, sobretudo em lugar de pontos finais. Observe-se sua precisão nestes trechos da crônica de hoje: “Outro queria saber se eu tinha livros de matemática, de geometria, respondi que não”, “O homem veio para uma série de reparos e, como era final de tarde, apanhou a mulher no trabalho e trouxe-a, daqui de casa iriam embora” e “Ela é uma dona de casa comum, o marido diz que muito diligente”. A concisão mostrada nessas construções Brandão talvez a tenha trazido dos tempos de repórter de jornal, nos anos 60. Se há um mérito maior no texto dito jornalístico, ele é o da economia de palavras, que pode ser encontrada, no exemplo mais evidente, nos contos e romances de Ernest Hemingway, também um dublê de jornalista e escritor.
No terceiro trecho citado, ocorre outra dúvida. Por que Brandão não escreveu ‘dona de casa’ com hífens, como mandam os dicionários? Teria sido outro descuido ou foi proposital? De fato, não faz o menor sentido tentar diferenciar a mulher que trabalha no lar da mulher que tem a posse de uma casa. O contexto em que se emprega a expressão já a explicaria.
Há inúmeras regras inúteis como essa na língua portuguesa. Alguém conseguiria explicar por que se deve usar boa-fé e má-fé, substantivados, com hífen, quando na forma de um adjetivo e de um substantivo juntos os termos expressam o mesmo significado? Infelizmente, nem a reforma ortográfica em via de adoção resolverá o problema, porque ela se limita a suprimir o sinal nas palavras compostas em que o primeiro elemento termine com uma vogal diferente da que inicia o segundo, ou em que o segundo elemento comece com ‘r’ ou ‘s’, quando então a palavra se tornará uma só, dobrando-se as consoantes. Exemplos: infra-estrutura passa para infraestrutura, mini-salão para minissalão, contra-regra para contrarregra, e assim por diante. A nova regra não se aplicará quando o segundo elemento começar com ‘r’ e o primeiro terminar com a mesma consoante. Assim, hiper-requintado, hiper-realismo e outras palavras compostas seguirão separadas por hífen. E também dona-de-casa, boa-fé, má-fé. Bem fazem os povos que usam o inglês, pois juntam tudo que podem para facilitar as coisas.
Mas, mesmo por lá, os revisores têm sua importância.
quinta-feira, 7 de agosto de 2008
Futebol covarde
O Alexandre Pato, tadinho, ficou o primeiro tempo todo jogando só, porque o Ronaldinho Gaúcho se acomodou no lado esquerdo do campo e nada fez além de esticar umas bolas para dentro da área. Correção: bateu bem uma falta, porque disso é capaz, mas não deu nenhum pique ao seu antigo estilo, nem foi brigar na zona do agrião (saudades do João Saldanha) para ajudar o Pato.
No segundo tempo, o zagueirão Company, braços de boxeador, foi expulso. E o que fez o Dunga? Ao invés de botar dois atacantes para martelar a defesa adversária, tirou Pato e colocou Jô. Trocou, como se diz, seis por meia dúzia. Pior: não abriu mão de continuar com três volantes, trocando Anderson por Ramires. Depois, o volante-gigante (no tamanho, não na bola) dos belgas, Fellaini, também seria expulso, mas o time brasileiro continuou tocando pra lá e pra cá, num esquema de jogo covarde e medíocre.
Na Copa do Mundo de 1990, o técnico Sebastião Lazaroni decretou a ‘era Dunga’ no esquema de jogo da seleção principal. Deu no que deu: Maradona entortou Dunga e passou a bola para Caniggia, que fez 1 a 0 para a Argentina e desclassificou o Brasil. A atual seleção olímpica lembra bem a principal daquela Copa. Sua proposta, tornada evidente hoje, é não correr riscos e, se der, ganhar por 1 a 0. O problema é que com tal filosofia o caldo quase sempre entorna, fazendo o time perder por 1 a 0.
Os jornais de hoje noticiam que a seleção principal do Brasil foi rebaixada para um vexatório sexto lugar no ranking mundial, a pior colocação desde 1993. Também pudera: dos seis jogos já disputados nas Eliminatórias sul-americanas para a Copa de 2010, só ganhou dois. É a era Dunga de novo, agora no comando da seleção.
terça-feira, 29 de julho de 2008
Mulheres-bombas
A primeira imagem que surge, quando se pensa no papel da mulher na história da humanidade, é a da loba que segundo a lenda amamentou e acabou de criar os irmãos Rômulo e Remo, fundadores de Roma no ano 753 AC. Os gêmeos, concebidos pela vestal Réia Sílvia, depois de seduzida pelo deus romano da guerra, Marte, também chamado de Ares, foram abandonados numa cesta no rio Tibre, tal como acontecera séculos antes com o menino Moisés no rio Nilo, no Egito, de acordo com o Antigo Testamento.
Tanto no caso de Moisés quanto no dos gêmeos, suas mães agiram como protetoras dos filhos ao implorar por suas vidas, conseguindo dos tios usurpadores de trono – na história de Roma foi Amúlio, que depôs e aprisionou seu irmão Numitor, pai de Réia Sílvia e legítimo rei – que eles fossem colocados num cesto de vime correnteza abaixo, em lugar de ser mortos pela espada. O mesmo instinto protetor teve a loba que recolheu os meninos do rio e os amamentou, não se importando em dividir o alimento de seus filhotes. E assim tem sido sempre, as mulheres defendendo a vida, em nome da preservação da espécie, os homens a atacando, em nome de glórias militares, riqueza ou poder. Mesmo Rômulo, repetindo Caim, matou o irmão Remo porque este queria fundar a nova cidade em local diferente – o monte Aventino – do escolhido por ele, o monte Palatino.
O homem que não pensa duas vezes antes de destruir é o mesmo que construiu a moderna civilização, mas nisso ele teve a ajuda decisiva da mulher. Mais do que limitar-se a cuidar da prole enquanto o marido estava nas guerras, e entre uma e outra campanha gerar e carregar no ventre um novo filho, a mulher sempre foi o elemento fundamental a impulsionar o homem na tarefa não só da reconstrução, mas da busca de um mundo melhor para todos pelo invento e pelo trabalho. Teria sido impossível para ele conquistar seus objetivos, seja em tempos de guerra, seja na paz, se não contasse com o apoio e a solidariedade da mulher que, ainda por cima, resolvia os problemas domésticos para ele poder se ocupar apenas de seus afazares.
Algumas fizeram até mais do que isso, como Madame Curie. Ao casar-se com um dos dois irmãos Curie, famosos físicos franceses, Pierre, a polonesa Marya Salomee Skodowska quis ser chamada assim, Madame Curie, pelo resto da vida. Com Pierre, trabalhando num modesto laboratório com chão de barro, ela descobriu o elemento químico do rádio. Duas vezes premiada com o Nobel, uma em 1903 em física, e outra em 1911 em química, quando a França entrou na Primeira Guerra, contra a Alemanha, ofereceu essas medalhas, e mais a que Pierre também ganhara em 1903, para serem refundidas e usadas como ouro para o custeio das despesas do país. O marido, antes de morrer atropelado por um coche, em 1906, chegou a recusar a Legião de Honra da França. “Não tenho absolutamente necessidade de ser condecorado, e sim de dispor de um laboratório”, respondeu Pierre à indicação para a honraria, a mais alta daquele país. Madame Curie foi uma companheira à altura. O raio-X, descoberto por eles, já estava sendo empregado no tratamento dos soldados feridos, com o equipamento montado em camionetes Renault. E, quando faltava motorista, lá ia Madame Curie para a frente de batalha, dirigindo uma dessas viaturas. Grande mulher, dedicada de corpo e alma às causas do país que adotara. Mesmo assim, quando anos depois da morte de Pierre ela se envolveu com o físico e matemático Paul Langevin, discípulo de seu ex-marido e homem casado, o populacho se reuniu na frente de seu modesto laboratório para chamá-la de adúltera e estrangeira. Que culpa poderia ter Madame Curie por agir como uma simples mulher, dotada de sentimentos além do cérebro privilegiado? Das duas filhas que teve com Pierre, Irène seguiu seus passos e foi também uma luminar da física, junto com o marido, Jean Frédéric Joliot, com quem descobriu os princípios da radioatividade artificial, base para o posterior desenvolvimento da fissão nuclear. E Eve se tornou sua biógrafa amorosa.
Perdoem-me os leitores do blog pela erudição de almanaque, mas é que não resisti a contar tais histórias depois de ler, no Estadão de hoje, que 70 pessoas morreram e 300 ficaram feridas pela ação suicida de três mulheres, que se infiltraram entre a multidão de peregrinos xiitas, em Bagdá e Kirkuk, no Iraque, para explodir as bombas amarradas ao corpo.
Como puderam, representantes do gênero que mais importou para a humanidade deixar as cavernas, trocar a vida pela morte? Seria uma demonstração de que no mundo de hoje nem conceitos arraigados em milênios resistem às pressões contrárias, nascidas ora do afrouxamento dos costumes, ora da manifestação ensandecida do ódio represado por facções religiosas ou políticas? Ou seriam, tão-somente, mulheres agindo para agradar a seus homens, ajudando-os na cama, na mesa, na casa e no trabalho, como sempre fizeram?
Difícil escolher uma resposta. Mas se é a última a verdadeira, então joguemos as maiores pedras nos homens que têm a covardia de mandar mulheres em seu lugar para fazer o serviço sujo.
sábado, 26 de julho de 2008
Homenagem a Jo Stafford
Existe uma categoria especial de jornalistas que se especializaram em memorabilia, termo latino que significa, literalmente, ‘coisas que valem ser lembradas’. Desse escasso e ilustre grupo, constituído por jornalistas-autores como Ruy Castro e Aluízio Falcão, que escrevem principalmente em veículos da imprensa, e Fernando Morais, que se dedica a resgatar fatos e personagens da história recente do Brasil em seus livros, venho acompanhando com especial interesse há vários anos, mais por afinidade pessoal com os assuntos abordados, os textos de Sérgio Augusto (não confundir com o homônimo mais jovem, também muito bom).
O carioca Sérgio Augusto, nascido em 1942, começou sua carreira aos 18 anos na Tribuna da Imprensa, como crítico de cinema. Trabalhou também no extinto Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, nas revistas O Cruzeiro, Fatos & Fatos e Veja, entre outras, fez parte da equipe que fundou o tablóide O Pasquim, passou pela Folha de S. Paulo e hoje escreve no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. O mínimo que se pode dizer dele é que se trata de alguém dotado não só de um saber enciclopédico em matéria de cinema, música e literatura, principalmente, como também da capacidade de cativar os leitores com seus escritos, ao mesmo tempo primorosos e amigáveis. Não sei se exagero, mas essa é uma qualidade que me parece estar mais concentrada na imprensa carioca, talvez pela tradição de investir em grandes cronistas, de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade a Carlinhos de Oliveira, passando por Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Foi lá, também, que Armando Nogueira enobreceu como ninguém a crônica esportiva do país, na coluna Na Grande Área, mantida por mais de uma década no Jornal do Brasil. Não se pode esquecer ainda que também foi lá que nosso maior escritor, Machado de Assis, publicou suas crônicas, em fins do século 19.
Bem, tudo isso vem a propósito da homenagem que Sérgio Augusto faz hoje, no Caderno 2 do Estadão, à cantora americana Jo Stafford, falecida na semana passada, aos 90 anos. Um jornalista menos preparado se limitaria a um necrológio com algumas frases entre aspas a respeito da cantora. Das mãos de Augusto, ao contrário, surge todo um painel de época, misturado a considerações que ele faz sobre a grande música americana da primeira metade do século passado até o início dos anos 60, que foi o período no qual Jo Stafford reinou, sobretudo durante a guerra, como uma cantora que personificava as garotas que os pracinhas deixaram na terra. Por sinal, embora Augusto não faça menção, nas fotos que ilustram o texto há um outro ícone da época, a atriz Betty Grable com suas pernas sensuais e o traseiro fornido que os soldados guardavam na porta do armário, nos alojamentos, além dos atores James Stewart e Clark Gable em uniformes militares.
Um detalhe que não me passou em branco, no texto, é que Jo Stafford e seu então marido, o maestro e arranjador Paul Weston, criaram uma gravadora própria, chamada Corinthian Records. Augusto não esclarece o motivo da escolha do nome, mas é possível que ele tenha sintetizado para Jo e Weston os objetivos de expansão da gravadora ao referir-se à cidade de Corinto, da Grécia Antiga. Corinto rivalizou com Atenas e Esparta em poderio econômico, assim como no domínio das artes e dos esportes, tendo servido de sede para os Jogos Ístmicos, promovidos à mesma época do surgimento das atuais Olimpíadas, na cidade de Olimpo, por volta de 2 500 AC.
Como sabem os corintianos, e também os despeitados palmeirenses e sãopaulinos, sem a mesma carga de história e tradição no nome, o Corinthian (sem o ‘s’ final) inglês – que fazia a mesma homenagem aos gregos de Corinto e, ao que consta, sobrevive até hoje, numa divisão inferior do futebol do Reino Unido – andou por aqui, no início do século passado, aplicando uma surra em times paulistas e inspirando a criação do homônimo e glorioso alvinegro do Parque São Jorge, em 1910.
Outro detalhe que me chamou a atenção no texto de Augusto é o entusiasmo com que ele se refere às facilidades oferecidas pelo site YouTube. Como já disse o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que na década de 60 trabalhou no jornal Última Hora e na histórica revista Realidade, da Editora Abril, ao lado de Roberto Freire, Sérgio de Souza e Paulo Patarra, "a tecnologia não dá o talento, mas ajuda a quem o tem". De fato, deve ser uma delícia para Augusto poder dividir o prazer de ouvir e ver Jo Stafford com os leitores, bastando indicar, para tanto, uma visita ao YouTube.
Aceitei o convite. E selecionei para o blog esta preciosidade de vídeo (clique aqui), na qual a afinadíssima Jo divide o canto com outra lenda da canção americana, Ella Fitzgerald, acompanhada por um conjunto liderado por dois dos maiores nomes da era das big bands, Harry James, com seu trompete, e Benny Goodman, com sua clarineta. O vídeo é longo, mas vale vê-lo até o final apoteótico, com Jo e Ella cantando juntas. Uma observação final, vê-se logo que de um leigo no assunto: como podia Ella não perder o tom quando James soprava o trompete tão perto de sua orelha?
quinta-feira, 10 de julho de 2008
O Raul
Circula entre funcionários da Esso um e-mail com cópia de texto de Max Gehringer, conhecido escritor de livros sobre gestão empresarial e carreiras que hoje mantém uma coluna nas revistas Época e Época Negócios, da Editora Globo, e aparece no programa Fantástico, da TV Globo, além de ter sido executivo destacado de grandes empresas como Pepsi, Elma Chips e Pullman. Intitulado Todos os chefes deveriam ser o ‘Raul’, o texto é exemplar como mensagem dirigida não apenas a chefias intermediárias, mas também ao comando de corporações do mundo dos negócios. Se todas as empresas usassem como paradigma a ser seguido o comportamento do Raul descrito no texto, certamente obteriam um salto de produtividade, além de tornar mais felizes os funcionários.
O Samuel Butler a que se refere o texto talvez seja um de dois homônimos, ambos ingleses e mortos, coincidentemente, num mesmo dia 18 de junho. O primeiro, e mais provável, é o poeta (8/2/1612~18/6/1680), que escreveu um poema satírico sobre o puritanismo, Hudibras, e o segundo, o escritor e filósofo Samuel Butler (4/12/1835~18/6/1902).
Abaixo, a íntegra do texto de Max Gehringer, ligeiramente editado por este blog:
oooooooooooooooooooooooooooooo
“Durante minha vida profissional, eu topei com algumas figuras cujo sucesso surpreende muita gente. Figuras sem um vistoso currículo acadêmico, sem um grande diferencial técnico, sem muito networking ou marketing pessoal. Figuras como o Raul.
Eu conheço o Raul desde os tempos da faculdade. Na época, nós tínhamos um colega de classe, o Pena, que era um gênio. Na hora de fazer um trabalho em grupo, todos nós queríamos cair no grupo do Pena, porque o Pena fazia tudo sozinho. Ele escolhia o tema, pesquisava os livros, redigia muito bem e ainda desenhava a capa do trabalho - com tinta nanquim.
Já o Raul nem dava palpite. Ficava ali num canto, dizendo que seu papel no grupo era um só, apoiar o Pena. Qualquer coisa que o Pena precisasse, o Raul já estava providenciando, antes que o Pena concluísse a frase.
Deu no que deu. O Pena se formou em primeiro lugar na nossa turma. E o resto de nós passou meio na carona do Pena - que, além de nos dar uma colher de chá nos trabalhos, ainda permitia que a gente colasse dele nas provas. No dia da formatura, o diretor da escola chamou o Pena de 'paradigma do estudante que enobrece esta instituição de ensino'. E o Raul ali, na terceira fila, só aplaudindo.
Dez anos depois, o Pena era a estrela da área de planejamento de uma multinacional. Brilhante como sempre, ele fazia admiráveis projeções estratégicas de cinco e dez anos. E quem era o chefe do Pena? O Raul.
E como é que o Raul tinha conseguido chegar àquela posição? Ninguém na empresa sabia explicar direito. O Raul vivia repetindo que tinha subordinados melhores do que ele, e ninguém ali parecia discordar de tal afirmação. Além disso, o Raul continuava a fazer o que fazia na escola, ele apoiava. Alguém tinha um problema? Era só falar com o Raul que o Raul dava um jeito.
Meu último contato com o Raul foi há um ano. Ele havia sido transferido para Miami, onde fica a sede da empresa. Quando conversou comigo, o Raul disse que havia ficado surpreso com o convite. Porque, ali na matriz, o mais burrinho já tinha sido astronauta. E eu perguntei ao Raul qual era a função dele. Pergunta inócua, porque eu já sabia a resposta.
O Raul apoiava. Direcionava daqui, facilitava dali, essas coisas que, na teoria, ninguém precisaria mandar um brasileiro até Miami para serem feitas.
Foi quando, num evento em São Paulo, eu conheci o vice-presidente de recursos humanos da empresa do Raul. E ele me contou que o Raul tinha uma habilidade de valor inestimável: ele entendia de gente. Entendia tanto que não se preocupava em ficar à sombra dos próprios subordinados, para fazer com que eles se sentissem melhor e fossem mais produtivos. E, para me explicar o Raul, o vice-presidente citou Samuel Butler, que eu não sei ao certo quem foi, mas que tem uma frase ótima: “Qualquer tolo pode pintar um quadro, mas só um gênio consegue vendê-lo”.
Essa era a habilidade aparentemente simples que o Raul tinha, de facilitar as relações entre as pessoas. Perto do Raul, todo comprador normal se sentia um expert, e todo pintor comum, um gênio. Essa era a principal competência dele.
Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos. Mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes.”
segunda-feira, 7 de julho de 2008
Tática de jogo
Um aspecto pouco comentado, mas notável no comportamento do torcedor de futebol, é o desinteresse que ele demonstra pela parte tática do jogo. Focado apenas no resultado, para ele tanto faz se a partida foi bem disputada ou não, se o time adversário mostrou méritos, se os técnicos de um e de outro lado souberam ou não preparar a equipe para a porfia. A vitória, apenas ela, é que quer, e se por goleada tanto melhor.
A torcida do São Paulo vaiou o time na noite deste domingo porque ele não conseguiu ir além de um empate, jogando em casa, contra o modesto Ipatinga, de Minas, penúltimo colocado no Campeonato Brasileiro da série A. Tudo bem que o goleiro Rogério Ceni ainda precisou se empenhar para que o time não acabasse derrotado, mas as vaias foram injustas. Depois de empatar com o Náutico e perder do Atlético Mineiro, do Flamengo e do Vasco da Gama, em seqüência, o Ipatinga fechou-se na defesa e jogou somente no contra-ataque, com o grandalhão Adeílson isolado na frente. Como destruir, no futebol, é mais fácil do que construir, alcançou assim o objetivo de não perder de novo. Já o São Paulo, concentrado no ataque, correu sérios riscos ao abrir espaços na defesa. Quer dizer, os jogadores de ambos os lados fizeram o que deles se poderia esperar, uns lutando para não cair ainda mais, outros tentando vencer a todo custo. O empate em 1 a 1, por isso, acabou sendo justo, mas a torcida são-paulina não quis saber, e mandou a vaia.
No Campeonato Brasileiro da série B, no sábado, Corinthians e São Caetano disputaram um outro tipo de jogo, mais técnico e menos repetitivo. Um jogo, não, um jogão de encher os olhos, embora o magro placar final de 1 a 0 a favor do Corinthians. Foi, seguramente, uma das melhores partidas do alvinegro da capital paulista neste ano, o que mostra que o técnico Mano Menezes soube preparar a equipe nos treinos feitos durante o retiro de cinco dias em Itu, no interior do estado. Firme na defesa, habilidoso no meio, rápido na frente, o Corinthians só não fez mais gols porque deparou com um adversário igualmente bem preparado, com jogadores desempenhando suas funções à beira da perfeição. Se é tudo isso que mostrou no sábado, o São Caetano se torna forte candidato a subir para a divisão principal do futebol brasileiro ao fim do atual campeonato.
Mesmo que, em tese, os adversários da série B sejam mais fracos que os da série A, de onde o Corinthians foi rebaixado no ano passado, pode-se afirmar sem receio que hoje há um outro time em campo, sobretudo na consciência tática. Além de contar com dois meias-armadores de ofício, Douglas e Elias, e dois volantes que tanto sabem defender quanto atacar, Fabinho (com seu reserva imediato Nilton) e Eduardo Ramos, o time tem agora uma forte arma nos deslocamentos constantes dos homens de meio e de frente, que facilitam o passe e abrem caminho para o avanço também dos laterais, Alessandro e André Santos. Com isso, ganha muito em fluência de jogo, evitando os chutões, e em ocupação de espaços. A chamada segunda bola, quase sempre perdida no ano passado, agora é sua na maioria das vezes, o que também lhe dá mais volume de jogo.
A partida Corinthians versus São Caetano, do sábado passado, certamente ficará gravada na mente de torcedores que apreciam o futebol acima das colorações clubísticas como uma das melhores disputadas na série B deste ano. Esperemos que haja outras assim daqui até o fim do ano, para nosso deleite.
terça-feira, 1 de julho de 2008
Arte em papel





Bolas, móbiles e vasinho de flores feitos por Ione
Minha amiga Ione Sawao, designer gráfica da revista Auto Esporte, da Editora Globo, ajuda a manter viva a arte dos origamis, essas delicadas dobraduras em papel que se praticam no Japão desde, ao que se saiba, princípios do período Edo (1603-1867). Para quem não tem a menor habilidade manual, como eu, é incrível observar a precisão com que Ione monta suas bolas (kusudamas), móbiles e vasinhos de flores usando apenas papel.
As fotos desta nota, copiadas do blog da Ione, dão uma idéia da beleza que é seu trabalho. No começo, ela fazia seus origamis apenas como hobby. Depois, com a demanda crescente, passou a aceitar encomendas pagas, seja de amigos e conhecidos, seja do público que visita seu blog e faz os pedidos pelo endereço de e-mail ali publicado.
Nas mãos dos grandes mestres, o origami atingiu alturas inimagináveis. Um dos artistas mais conhecidos dos tempos atuais, Satoshi Kamiya, que ainda não chegou aos 30 anos, cria por exemplo dragões com escamas e tudo num papel dobrado cerca de 270 vezes. Mesmo aqui no Brasil não faltam grandes talentos. Numa mostra organizada durante os festejos do centenário da imigração japonesa, em São Paulo, havia uma escola de samba, com várias alas, em papel.
Durante seu desenvolvimento no Japão, o origami deu origem a uma variação, chamada kirigami. “Gami” é papel, e “ori”, dobrar. Já “kiri” significa cortar. Há também trabalhos inacreditáveis no kirigami, com figuras recortadas que parecem saltar da folha de papel. A foto abaixo mostra um exemplo, dos mais simples, dessa outra arte.

sexta-feira, 16 de maio de 2008
Angelina Jolie

Angelina e Brad Pitt no Festival de Cannes
“Este glamour é o que me dá projeção para lutar por melhores condições de vida para milhões de deserdados ao redor do mundo. Espero, assim, poder dar bons exemplos para meus filhos. No limite, é o objetivo que persigo. Ser uma boa mãe, uma boa cidadã.” É o que disse ontem a atriz Angelina Jolie, 32 anos, em entrevista durante o Festival de Cannes, segundo o crítico e repórter de cinema Luiz Carlos Merten, do Estadão.
Grande Angelina. Além de ótima atriz e bela mulher, ela é um ser humano admirável. Embaixatriz da Boa Vontade da ONU, distribui um terço de seus rendimentos, que não são pequenos, aos pobres do mundo. Tem uma filha, Shiloh, prestes a fazer 2 anos agora em maio, com o ator Brad Pitt, e espera dele gêmeos, mas é também mãe adotiva desde 2002. Os meninos Maddox, de 5 anos, e Pax, de 4, são respectivamente cambojano e vietnamita, e a menina Zahara, de 3, etíope.
Para Merten, ela procura ser “politicamente correta até debaixo d’água”. Talvez. Mas isso não retira o mérito do que faz.
sexta-feira, 2 de maio de 2008
O grau de investimento
Funcionários da administração do Tesouro brasileiro e de um banco americano em Wall Street abriram champanhe. Não era para menos. O Brasil conseguiu, pela primeira vez, atingir o grau de investimento, na avaliação da Standard & Poor’s, S&P, a maior agência de rating do mundo. Candidata-se, assim, a receber um rio de dólares, já que enormes fundos de pensão americanos, bancos internacionais e outros aplicadores conservadores tiveram removido um empecilho legal para investir aqui. O Ibovespa, índice da Bolsa de Valores de São Paulo, subiu 6,3% no primeiro pregão após a notícia, hoje chegou a passar dos 70 000 pontos e pode valorizar-se muito mais ainda. Já o dólar fechou hoje a 1,65 real, a menor cotação desde 10 de maio de 1999.
Lula comemorou à sua maneira, ou seja, diante de um microfone. Disse que se tratava de uma conquista do povo brasileiro. Foi até modesto, ao contrário de seu ministro da Fazenda, que acha que o grau de investimento veio só porque a economia brasileira – da qual supostamente é o dono da quitanda - está crescendo. Mantega se julga um economista tão competente que não hesita em calcular o impacto exato, em centésimos de porcentagem, de uma alta do óleo diesel na inflação. Para que perder tempo pensando em como um frete mais caro pode influir nos preços de uma infinidade de produtos agrícolas e industriais transportados nos caminhões? Decisões de reajuste, como o ministro e o mundo sabem, variam de empresa para empresa. Mesmo numa prova de curso de graduação Mantega seria reprovado com tal resposta.
Muito mais responsável do que o ministro pelo grau de investimento obtido é o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, porque as agências de rating apenas quantificam o risco no qual incorrem os investidores externos. Isso tem a ver muito mais com as condições de solvência do país e de suas empresas que tomam crédito no exterior, ou seja, a capacidade de honrar os compromissos assumidos com os credores, do que com o crescimento momentâneo da economia. Ao seguir ao pé da letra o regime de metas de inflação durante já quase um mandato e meio de governo, Meirelles tornou a economia brasileira muito mais previsível do que no passado, estimulando assim o setor privado a investir. Tudo o mais – crescimento da produção, da renda e do crédito, acúmulo de reservas, mesmo uma redução prolongada de juros – vem por conseqüência. Lula, é forçoso assinalar, teve um grande mérito ao manter Meirelles no cargo contra todas as pressões palacianas, com o vice Alencar e a ministra Dilma à frente, e dos ideólogos e economistas de meia-tigela do PT. Fez mais: embora graças ao aumento da arrecadação e não do corte de despesas, não abriu mão de gerar superávits primários na execução fiscal, e não deixou mexer no câmbio flutuante. Ou seja, seguiu direitinho a cartilha deixada pelo antecessor, Fernando Henrique Cardoso, mas até por isso merece aplausos, porque se adotasse o receituário petista nem dá para imaginar como estaria o Brasil a esta altura. Em melhor situação do que a atual não, com certeza.
De toda forma, a classificação dada pela S&P representa apenas uma conquista parcial. Para ser de fato um país grau de investimento, o Brasil ainda precisa de confirmação por parte de duas outras agências, a Fitch e a Moody’s. A primeira deverá fazê-lo em breve, uma vez que uma sua equipe esteve em Brasília para falar com técnicos do governo nesta semana. Já a Moody’s tem sido a mais crítica das três grandes agências, por entender que há uma fragilidade na área fiscal, com o aumento das despesas correntes do governo, e uma outra no perfil da dívida mobiliária federal, com uma alta concentração de vencimentos de curto prazo. A elevação da nota por ela não é, portanto, favas contadas. Além disso, por detrás das borbulhas de champanhe se pode ver que mesmo na escala de classificação da S&P o Brasil alcançou apenas o primeiro dos dez degraus de países tidos como confiáveis para investimento. Liderados pelos EUA, um conjunto de nove países, sendo seis europeus, mais a Austrália e o Canadá, está no topo da lista, com a nota AAA. Na América Latina, estão na frente do Brasil o México e o Chile, este, cinco degraus acima. Também não existe cadeira cativa nesse clube dos países confiáveis, como mostra a Colômbia, rebaixada para o grau especulativo pela S&P.
É bom, portanto, não exagerar nas comemorações, porque além das fragilidades apontadas pela Moody’s existem mais algumas, sendo a mais grave o estado lastimável da infra-estrutura, que põe a perder parte das safras de grãos nas estradas intransitáveis. Junto com as precárias vias de acesso, a absurda carga tributária, em primeiro lugar, e os altos juros, em segundo, compõem o que se conhece como custo Brasil, um handicap na exportação. E por falar nisso convém não esquecer que, no momento, a luz amarela pisca num fator conjuntural. De superavitárias as contas externas se tornaram deficitárias, com o desmesurado aumento das importações e das remessas de lucros para o exterior, causado pelo real valorizado. Em apenas três meses, de janeiro a março, foram 10,3 bilhões de dólares no vermelho. Há um colchão de segurança no nível das reservas, 195 bilhões de dólares, mas esse déficit conjuntural precisa ser corrigido antes que se transforme numa bomba-relógio. Por último, mas não menos importante, como diriam os ingleses, não se pode esquecer do desaquecimento da economia americana, em decorrência da crise de crédito imobiliário. Os efeitos já se espalham por outras economias, e o Brasil, pelas fragilidades apontadas, não está imune a uma perda cambial de grandes proporções.
Esperemos que o pior não aconteça. Mas, como prevenir é melhor que remediar, quanto antes se começar a consertar a infra-estrutura e promover as reformas que ainda faltam nas áreas previdenciária, tributária e sindical, sobretudo, melhor. Em outras palavras, Lula tem de descer do palanque e começar de fato a governar.
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Sobre Isabella
Três homens foram detidos hoje à tarde pela polícia, por causa da arruaça que faziam, junto com outras pessoas, à porta do prédio em que mora o pai de Anna Carolina Jatobá, a madrasta de Isabella Nardoni, pedindo justiça pelo assassinato da menina. Dois deles, soube-se depois, possuíam ficha policial.
O professor Carlos Alberto Di Franco escreve, em seu artigo de hoje no Estadão: “A era do entretenimento, cuidadosamente medida pelas oscilações do Ibope, tem nos crimes e na violência um de seus carros-chefe. A transgressão passou a ser o espetáculo mais rotineiro de todos. Alguns setores do negócio do entretenimento, apoiados na manipulação do conceito de liberdade de expressão, crescem à sombra da exploração das paixões humanas. Ao subestimar a influência da violência ficcional, omitem uma realidade bem conhecida da psicologia: a promoção do sadismo como instrumento de diversão não produz a sublimação da agressividade, antes representa um forte incitamento a comportamentos anti-sociais. Morte, agressão e violência, realidades banalizadas por certos telejornais, acabam sendo incorporadas pelos criminosos potenciais. A onipresença de uma TV pouco responsável pode estar na origem de inúmeros comportamentos patológicos”.
Não deixa de ter razão o professor, mas ele é um idealista. A exploração das paixões humanas e a violência ficcional não são produto apenas de uma TV pouco responsável ou de telejornais sensacionalistas. Até nas artes plásticas e na música, para não falar do cinema, como obra solitária ou conjunta, a violência ficcional e a reproduzida do cotidiano constituem matéria-prima recorrente. Por isso, é um pouco exagerado chamar de irresponsável a TV que as divulga. Se ela o faz é porque esse tipo de material rende audiência. Como as redes de televisão deveriam agir: censurar-se, perder audiência e, em conseqüência, a receita publicitária, até o ponto de fechar as próprias portas? O que é melhor, do ponto de vista do interesse coletivo: ter uma TV com grande público, embora de duvidosa qualidade, ou uma TV de alta qualidade ética a que só alguns gatos pingados queiram assistir? Mais uma pergunta: o que vem a ser qualidade ética na programação da TV se a violência ficcional ou real mostrada na tela é produto ou de artistas, escritores, intelectuais, técnicos competentes no ofício, num dos casos, ou meramente reproduzido da realidade, no outro?
O caso Isabella, com toda a repercussão causada na opinião pública, nos obriga a refletir se, no fundo, a verdadeira hipocrisia não estaria na tentativa de cada um de nós de tentar ocultar que sob uma capa de civilidade temos todos um lobo indormido dentro de nós.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
Bogart e o xadrez
Acabo de descobrir no site Chessgames.com, que recomendo aos aficionados desse esporte, que o grande Humphrey Bogart, um mito do cinema, foi também um bom jogador amador de xadrez. Tão bom que numa partida simultânea empatou com Samuel Reshevsky (26/11/1911-4/4/1992), um dos maiores enxadristas do mundo na época. Polonês naturalizado americano, Reshevsky foi seis vezes campeão de xadrez dos Estados Unidos e chegou a postular o título mundial. Menino-prodígio, com apenas 9 anos de idade, recém-emigrado com a família para o país, enfrentou 20 cadetes e oficiais da Academia Militar de West Point numa simultânea. Ganhou de 19 e empatou com um.
Bogart, inesquecível por seus papéis em filmes como O Falcão Maltês (The Maltese Falcon, 1941, de Howard Hawks), Casablanca (idem, 1942, de Michael Curtiz), À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946, também de Hawks), O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of Sierra Madre, 1948, de John Huston), Uma Aventura na África (The African Queen, 1951, também de Huston), A Condessa Descalça (The Barefoot Contessa, 1954, de Joseph L. Mankiewicz), Sabrina (idem, 1954, de Billy Wilder) e A Nave da Revolta (The Caine Mutiny, 1954, de Edward Dmytryk), entre outros, deixou viúva a bela e grande atriz Lauren Bacall, com quem fora casado de 1945 a 1957.
Conheceram-se durante as filmagens de Uma Aventura na Martinica (To Have or Have Not, 1944, outro filme de Howard Hawks), baseado numa novela de Ernest Hemingway e com participação no roteiro de ninguém menos que William Faulkner, também Nobel de Literatura. Era o primeiro papel de Lauren, selecionada por Hawks depois de vê-la na capa da revista Harper’s Bazaar. Dizia-se que Bogart estava interessado na outra atriz principal do filme, Dolores Moran, mas ele tinha olhos mesmo é para a Lauren, com quem se casou no ano seguinte, ele com 45 e ela com 20 anos (Bogart nasceu no dia de Natal de 1899, Lauren em 16/9/1924).
Companheira de todas as horas, Lauren foi com o marido uma ativista contra o macartismo, apesar dos riscos envolvidos. Por sinal, talvez para mostrar que não misturava as coisas, Bogart trabalhou com o diretor Dmytryk, um ex-colaborador macartista em A Nave da Revolta, junto com outros atores de peso como José Ferrer, Van Johnson e Fred MacMurray, e obteve sua terceira indicação ao Oscar como melhor ator por seu papel como o desequilibrado capitão do navio que é destituído do posto por um motim a bordo. As outras foram por Casablanca e Uma Aventura na África, esta última com sucesso.
Lauren também jogava xadrez e com talento, tanto que em 1945 seu casório com Bogart foi celebrado na capa da revista Chess Review. E em 1951 disputou contra ele uma partida que está nos anais do site Chessgames.com, registrada com o mesmo nome do filme no qual se conheceram. A abertura empregada por Bogart, jogando com as peças brancas, foi a Ruy Lopez, e a defesa escolhida por Lauren, a Espanhola, em fianqueto. Bogart precisou suar 31 lances até que a mulher abandonasse a partida.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Os stunts de dona Matilde
No Japão feudal e em outros lugares do mundo, reis, imperadores e governantes sempre tiveram seus escudos humanos, gente disposta a fazer o papel de bucha de canhão – isso, para não falar dos stunts, profissionais que substituem os astros de cinema nas cenas mais arriscadas. Em viagens ou nas masmorras, o provador experimentava antes a comida destinada ao rei, com o objetivo de evitar que este fosse envenenado. Napoleão, na sua soberba de se julgar um predestinado, não tomou esse cuidado e morreu por overdose de arsênio em 1821, na ilha de Santa Helena, onde fora confinado pelos ingleses após a Batalha de Waterloo. No atentado contra o presidente americano Ronald Reagan, em 1981, não foi um agente de segurança mas sim seu secretário de Imprensa, James Brady, quem levou um dos tiros disparados por John Hinckley, Jr, e se tornou paralítico. O próprio Reagan, recém-empossado para seu primeiro mandato, escapou por pouco. Uma das balas o atingiu a menos de uma polegada do coração.
Os interesses de Estado justificam a existência dos stunts da vida real. E morrer para proteger a segurança institucional não deixa de ser heróico. Mas no Brasil do governo petista surgiu uma nova categoria de stunts: a dos bodes expiatórios. Também eles se imolam, só que em nome de um difuso conceito de segurança institucional ligado mais aos interesses do partido do que da nação.
O mais famoso dos bodes expiatórios recentes foi o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. Até hoje, de forma canina, ele continua a sustentar a versão de que foi o único responsável pela contratação dos financiamentos com os quais seu partido deu origem ao mensalão, embora até o concreto da rampa do Palácio do Planalto saiba que ele não tinha poderes para tanto.
Agora, a ex-ministra de Igualdade Racial Matilde Ribeiro acaba de dar uma contribuição de monta para aumentar a coleção de bodes petistas. Antes de ser obrigada a sair do governo por torrar dinheiro público com os cartões corporativos, quis livrar a própria cara demitindo dois assessores, segundo ela responsáveis por induzi-la a ‘erro administrativo’. Ocupante de cargo em que deveria cuidar da igualdade social, fez exatamente o contrário, defendendo políticas raciais e o primado da diversidade. Queria dar força, por essa via torta, à afirmação dos fracos e oprimidos, em oposição às elites dominantes. Mas quando se viu apertada não hesitou em jogar a culpa sobre os mais humildes. Cadê a coerência, dona Matilde?
domingo, 13 de janeiro de 2008
Jornalismo com tesão
De permeio (complemento perfeito para ‘outrem’, não acham?), Verissimo lamenta a troca, nas redações, “do metralhar das máquinas de escrever pelo leve clicar dos teclados dos micros”. Alguém ainda vai elaborar um tratado sobre as conseqüências dessa substituição para o jornalismo mundial, diz, porque as redações foram transformadas, de fábricas, em claustros. E defende, “sem muita convicção”, a tese de que a mudança de ambiente afetou o caráter do jornalista. Sem a necessidade do grito para se fazer ouvir e com o distanciamento do ofício de um barulhento trabalho braçal, escreve, hoje não vale mais “a velha máxima de que jornalista era de esquerda até o nível de redator-chefe e de direita daí para cima (...). A nova direita é filha do silêncio”.
Verissimo talvez exagere nessa conclusão, porque é sabido que a maioria das redações anda entupida de petistas, mas não há como contestar que nesses hoje claustros muitos jornalistas, se não o são, agem como se fossem de direita, no sentido etimológico da palavra, com sua contenção emotiva, seu conformismo diante de ordens superiores e sua adesão bovina a causas tidas como politicamente corretas.
Sou do tempo em que se jogava futebol com bola feita de folhas de jornal na redação. E em que, entre o matraquear das máquinas e dos falatórios, se ouvia o grito “Desce!”, para chamar o contínuo e lhe entregar as laudas de texto enroladas, depois de coladas na seqüência. E se tratava mesmo de descida, porque as laudas eram jogadas pelo contínuo no buraco aberto de uma coluna no meio da redação da Folha, para irem parar um andar abaixo na mesa do chefe da oficina (que é como se chamava a gráfica), o qual as distribuía entre os linotipistas, aboletados em suas máquinas alimentadas a chumbo quente. O material assim composto era depois colocado pelos paginadores dentro de molduras (ramas) do tamanho de uma página impressa de jornal, ajustado na altura com finas placas metálicas (entrelinhas), amarrado para não haver nenhum problema no transporte e levado para uma prensa (calandra), onde se produzia a página em negativo num material chamado flan. O negativo era depois copiado para a chapa que recobria o cilindro das impressoras. A gritaria na redação, o calor infernal liberado pelas linotipos na gráfica, os paginadores transpirando em seus macacões, tudo isso aproximava o trabalho ao de uma fábrica, jamais lembrando o atual ambiente ascético, inodoro e sem graça em que são feitos os jornais. De operários, os jornalistas foram transformados em barnabés de repartição pública, e isso, forçosamente, traz alguma conseqüência ao produto que fazem. Como diz Verissimo, seria mesmo o caso de alguém escrever um tratado sobre isso.
E não me venham com essa história de que a tecnologia ajudou na agilidade da notícia. Estávamos no fechamento, ali pelas dez da noite, quando se soube que barracos rolaram pela ribanceira numa chuvarada em Santos. Convocados pela chefia, o repórter Fraterno Vieira, o fotógrafo e o motorista de caminhão lá foram, numa louca descida pelas curvas da Anchieta. Vieira viu o desastre, falou com parentes das vítimas, escreveu o texto e transmitiu o material por telex, junto com as fotos (por radiofoto), a tempo de a notícia estar na primeira página do jornal nas bancas, de manhãzinha.
Vieira agiu como todos os repórteres daquela época. Foi até o local do evento para escrever sobre o que realmente vira e ouvira, porque as entrevistas e coberturas eram feitas assim, olho no olho entre jornalistas e depoentes, não por telefone como nos dias de hoje.
É claro que a tecnologia também serviu para aprimorar o jornalismo, ao facilitar o trabalho de pesquisa. Repórteres e editores perdiam muito tempo, antes, no resgate de dados que pudessem servir de referência para o texto. Com o passar dos anos, porém, mesmo essa vantagem material vem perdendo substância, porque aproveitando as facilidades donos de jornal e seus paus-mandados passaram a exigir produções a metro. É comum um repórter ter de escrever hoje duas, três ou até mais matérias por dia. Além disso, os prazos de fechamento se tornam cada vez mais apertados, por força da concorrência. Não há qualidade que possa resistir a essa pressão do tempo.
Causa inveja aos jornalistas brasileiros o expediente avantajado das publicações estrangeiras, em especial o das revistas americanas, com o triplo ou o quádruplo de equipes de redação em comparação com as nossas. O grau de profundidade das reportagens não é portanto produto exclusivo do talento e competência dos profissionais. Tem a ver, antes, com as condições materiais disponíveis, donde se conclui que também a qualidade da imprensa depende do desenvolvimento econômico alcançado pelo país.
Tudo pesado, o que se pode dizer é que faltam elementos para afirmar se com o passar dos anos a imprensa brasileira melhorou ou piorou. Hoje como ontem, há nela excelentes profissionais. Mas de uma coisa o pessoal da velha guarda tem certeza: a de que o jornalismo da máquina de escrever era feito com mais alegria do que o do computador e, por isso, com maior tesão.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2008
É burro porque é pobre?
Há muito tempo educadores do mundo inteiro se preocupam com os desníveis de QI dos alunos, na tentativa de encontrar um ponto médio para tornar as aulas aproveitáveis pelo maior número possível deles. Elaboraram-se assim diversos testes para a medição de habilidades cognitivas relacionadas com a inteligência, entre elas as da expressão verbal, do raciocínio lógico/matemático, do domínio espacial e do uso da memória. Mesmo esses testes, porém, vêm perdendo eficácia com o passar dos anos. Segundo Flynn explica no seu novo livro, What Is Intelligence? Beyond the Flynn Effect, ainda não traduzido no Brasil, isso se deve ao fato de que no mundo atual crescem as exigências de aplicação da chamada inteligência fluida, responsável pelo raciocínio abstrato e a resolução de problemas novos. Ou seja, tende-se a valorizar mais as habilidades para executar tarefas específicas do que as ligadas de modo genérico a um conceito mais global de inteligência.
A psicóloga Carmen Flores-Mendoza, do Laboratório de Avaliação das diferenças Individuais, da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, também ouvida na reportagem, diz a esse respeito: “Os ganhos cognitivos (mostrados nos testes), portanto, podem ser de variada intensidade e diferente qualidade, dependendo da exigência presente em cada sociedade, cultura ou nação”. Segundo ainda a reportagem, a psicóloga desenvolve um trabalho com outros pesquisadores da América Latina para investigar a relação entre inteligência, rendimento escolar e riqueza das nações, a partir dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos, Pisa, que mede o desempenho de alunos de 15 anos em 57 países, com o objetivo de oferecer indicadores sobre a qualidade dos sistemas educacionais. O programa, no qual o Brasil se tem saído muito mal, como seria de supor, permite avaliar basicamente o conhecimento de ciências, além da capacidade de entendimento da leitura e do domínio de noções de matemática. No quesito referente ao aproveitamento da leitura, os alunos brasileiros obtiveram a média de 396 pontos no ano 2000, contra 546 na Finlândia, 534 no Canadá e 529 na Nova Zelândia, ficando ainda abaixo de colegas latino-americanos como os mexicanos, argentinos e chilenos.
O trabalho em que Carmen se envolve, data venia, parte contudo de uma premissa equivocada. Ao relacionar níveis médios de QI da população com os de renda per capita, entendendo que quanto mais baixos os primeiros também menores são os segundos, confunde efeito com causa. É certo que conhecimentos maiores contribuem para acelerar o crescimento econômico, mas também não dá para negar que quanto mais rico o país, mais seus cidadãos têm acesso à cultura e às informações específicas geradas pelo progresso científico e tecnológico. O risco maior, o da simplificação inaceitável num trabalho acadêmico, estaria numa eventual conclusão de que povos com QI inferior se condenariam ao atraso eterno, quando existem muitos exemplos de países que deram saltos de desenvolvimento concentrando esforços na educação e no alcance de metas prioritárias. Sem contar o fato de que uma simplificação desse tipo infelicitaria Flynn e todos os outros pesquisadores sérios, que tanto têm lutado para provar que a inteligência, longe de ser um fator genético ou racial, pode ser aumentada e moldada pelo ambiente favorável.