quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Elifas e Adoniran


Adoniran Barbosa, por Elifas Andreato em capa de disco

A abertura, hoje em São Paulo, de uma retrospectiva da carreira de Elifas Andreato, em homenagem aos seus 60 anos de vida, é uma oportunidade para o público revisitar a marcante obra gráfica desse artista diferenciado. Paranaense de Rolândia e operário na juventude, Elifas trabalhou na Editora Abril, onde subiu da gráfica para a redação para se tornar diretor de arte. Estava aberto o caminho para que ele, depois de envolver-se com o pessoal do meio artístico, produzisse uma grande quantidade de material como capas de discos e de livros, além das inúmeras feitas para revistas, e cartazes de teatro. Como militante da oposição ao regime militar, foi um dos fundadores e colaboradores de dois célebres veículos da imprensa alternativa da época, Opinião e Argumento.
A ilustração acima, feita por Elifas para capa de disco, capta com perfeição a personalidade de Adoniran Barbosa, cujas composições musicais representam o maior testemunho de que São Paulo não é, como querem os cariocas, o túmulo do samba. Filho de imigrantes italianos nascido em Valinhos, interior paulista, em 6 de agosto de 1910, e morto em 23 de novembro de 1982, na capital do estado, Adoniran entregou marmitas e vendeu tecidos na juventude, enquanto dava vazão à sua veia de compositor e cantor em programas de calouros em rádios. Já conhecido – vencera um concurso carnavalesco da Prefeitura paulistana com a marchinha Dona Boa, em 1934 -, e tendo adotado o pseudônimo Adoniran Barbosa (seu nome de batismo era João Rubinato), ele se lançou definitivamente para a fama quando a Rádio Record o contratou como ator cômico, locutor e discotecário, em 1941. Durante décadas seu personagem Charutinho, um favelado negro e dado à bebida, marcou época, e até hoje há programas esportivos de rádio com seus sucedâneos, todos com aquela voz grossa e pastosa a tecer considerações sobre o Corinthians, seu time do coração.
Na música, com seu talento para compor personagens, Adoniran criou uma espécie de alter-ego de Charutinho, só que branco e ligado à colônia italiana da região paulistana do Brás e adjacências (estendidas até o Jaçanã, na zona norte, em seu imortal Trem das Onze, de 1965), mas igualmente pobre e semi-analfabeto. Foi um gênio ao transpor para letras de música esse peculiar modo de falar dos ítalo-brasileiros de São Paulo, assim como o da gente pobre e iletrada que se amontoa nas favelas e em alguns bairros da periferia. De mais de uma maneira, portanto, personificou o clown desenhado por Elifas Andreato, com sua preocupação em fazer o público rir.
Mas também sabia fazer chorar. O autor de um dos mais belos versos da música popular brasileira, 'Deus dá o frio conforme o cubertô (cobertor)', em Saudosa Maloca, de 1955, compôs além de seus famosos sambas obras-primas da dor-de-cotovelo como Vila Esperança, Prova de Carinho e, sobretudo, Bom Dia, Tristeza, esta, musicada por ele sobre letra de Vinicius de Moraes, criador, aliás, da frase depreciativa sobre o pendor paulista para o samba. 'Bom dia, tristeza./Que tarde, tristeza,/Você veio hoje me ver'. Os versos do grande Vinicius ganharam uma melodia maravilhosa de Adoniran.
Perto do fim da vida, ele podia ser visto com freqüência, solitário e triste como o clown de Elifas, num bar da rua Major Quedinho, na região central de São Paulo. Com seu cachecol amarronzado no pescoço e um chapéu de feltro meio de banda na cabeça, pedia sempre uma sopa no balcão, tomava-a devagar e depois se ia. Soube-se depois de morto que era além de tudo um exímio artesão em madeira. Deixou esplêndidos trenzinhos coloridos, com locomotiva e vagões.

Esfinges humanas

Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?


Esse poema, Esfinges, extraído do livro Pássaro de Vidro (Editora Hedra, 2006), do poeta e jornalista Carlos Machado, retrata bem a incomunicabilidade da alma humana. Com o poder de síntese próprio da linguagem poética, revelado sob versos construídos quase como prosa, o autor penetra no abismo que existe entre o aparente e o real, o exibido e o oculto, o fingido e o sentido no jogo das relações humanas. Para além da falsidade do ouro nos dentes, o espelho mostra a esfinge que cada um de nós é. E ao proteger nosso interior com uma couraça, por medo de desnudar nossas fraquezas, também falhamos na tentativa de decifrar outras esfinges.

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Choque de moralidade

Paulo Autuori é um vencedor, tanto como técnico de futebol quanto como pessoa. Educado, de fala mansa embora com voz de barítono, mesmo depois de estrear com uma sonora goleada contra o Corinthians, aplicada por seu então time, o São Paulo, no Campeonato Brasileiro do ano passado, preferiu atribuir o resultado às artes do acaso. Em nenhum momento cantou de galo para os repórteres que o entrevistavam. No fim do ano, outro feito. O São Paulo foi campeão mundial interclubes em Tóquio, e de novo ninguém ouviu Autuori cacarejar sobre seus méritos.
Agora, quando se lê uma entrevista dada por ele ao jornal O Estado de S. Paulo no Japão, país no qual dirige hoje o Kashima Antlers, surge um Paulo Autuori por inteiro. Entende-se que ele não apenas parece ser, mas é de fato um sujeito digno e um brasileiro com 'b' maiúsculo. O seguinte trecho, em resposta a uma tentativa de comparação do Brasil com o Japão na área de segurança, feita pelo repórter Eduardo Maluf, é exemplar:
"O Brasil não é parâmetro para segurança, porque aí a coisa é absurda. A segurança deveria ser algo normal, como aqui. É incrível o que ocorre no Brasil, qualquer cidadão se sente inseguro. E o pior é que a gente perdeu o poder de indignação. Veja, há pessoas com problemas graves, denúncias, sendo eleitas. Precisamos tomar um choque. Não adianta a pessoa se indignar quando seu clube perde, quando a seleção perde. As pessoas têm de se indignar com as coisas realmente importantes. Vivemos crise de princípios. O problema é a questão de o brasileiro ser o povo da esperança. Não existe viver de esperança. A gente vive de realidade."
O choque de moralidade pregado por ele é o mesmo que no passado políticos como Mário Covas defenderam. Pena que esse choque, até agora, não tenha ocorrido nem dê sinais de algum dia vir a ocorrer.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Os ventos da América

"O golpe do impeachment de Clinton fracassou, mas três anos depois, graças à clamorosa fraude eleitoral na Flórida, os ultra chegaram à Casa Branca com o renascido religioso George W. Bush. A partir de então, ou mais exatamente do 11 de Setembro, a pretexto da guerra ao terror, os Estados Unidos passaram a viver sob um regime aparentado ao autoritarismo.
As evidências dificilmente poderiam ser mais abundantes: um Congresso invertebrado (além de corrupto e o mais ocioso em 60 anos), a mídia em geral acovardada, o dissenso perseguido, um presidente acima da lei e um vice defensor da tortura de suspeitos de terrorismo - praticada, aliás, no Iraque, em Guantánamo e onde quer a CIA terceirizasse os seus interrogatórios. Uma profusão de normas liberticidas de duvidosa legalidade e de procedimentos tipicamente ditatoriais tornaram a América irreconhecível. Mas, com tudo isso à mostra, nunca duvidamos de que a democracia americana sairia da era Bush incólume.
O julgamento dos que se aproveitaram do trauma do 11 de Setembro para tentar desfigurá-la começou na terça-feira. As urnas não só revigoraram as instituições democráticas, mas atestaram a inigualável autenticidade da democracia que encantou Alexis de Tocqueville. Pela primeira vez, a Câmara será presidida por uma mulher, Nancy Pelosi. Pela primeira vez, a crucial Comissão de Orçamento da casa será dirigida por um negro, Charles Rangel. Pela primeira vez, um Estado WASP como Massachusetts será governado por um negro, Deval Patrick. E, pela primeira vez, enfim, os principais presidenciáveis democratas são uma mulher, a senadora Hillary Clinton, e um negro, o senador Barack Obama. 'Às vezes', escreveu ontem no New York Times o colunista (negro) Bob Herbert, 'você consegue sentir os ventos da história soprando.' São os ventos da América."
(Trecho final do admirável primeiro editorial da edição de hoje de O Estado de S. Paulo, publicado com o mesmo título desta nota. O jornal se refere à estrepitosa vitória democrata nas eleições parlamentares e para governos estaduais, obtida sobre os fundamentalistas de direita republicanos representados pelo presidente George W. Bush e seus seguidores)

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

O Pequeno Príncipe


O pequeno viajante, no traço de Saint-Exupéry

O falso intelectualismo menospreza O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Alguém dessa corrente definiu-o como 'o livro das misses', e a turba ignara foi atrás. Provavelmente, nem o autor da definição nem suas vaquinhas de presépio leram algum dia o livro.
Que livro de miss coisa nenhuma, embora algumas moçoilas carnudas dadas a exibir-se na passarela possam até tê-lo lido. E, se o fizeram, agiram melhor que os detratores de sua inteligência. Aprenderam pelo menos algumas lições básicas de como ser gente, por meio dessa enternecedora fábula sobre um pequeno viajante sideral que, tentando entender os homens, recolhe seus mais preciosos ensinamentos de uma flor e de uma raposa.
Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon, na França, em 29 de junho de 1900, e desapareceu em local ignorado, talvez no Mar Mediterrâneo, quando o avião que pilotava foi abatido pelas tropas nazistas, em 31 de julho de 1944. Formado em arquitetura na Escola de Belas-Artes de Paris, tornou-se voluntário do Correio Aéreo como membro ativo da Resistência Francesa contra a ocupação do país pelas forças de Hitler na Segunda Guerra, e participou de diversas ações arriscadas ao voar sobre as linhas inimigas, até seu desaparecimento.
Seus poucos livros, entre eles O Pequeno Príncipe, estiveram proibidos oficialmente de circular na própria França ocupada, governada por colaboracionistas. Há quem diga que o soldado nazista que acertou seu avião levava consigo um exemplar do Príncipe, mas isso não deve passar de lenda. O livro foi publicado pela primeira vez em 1943, já com as ilustrações pintadas a aquarela por Saint-Exupéry, e traduzido para o alemão no ano seguinte, pouco antes da última missão militar cumprida pelo autor. "Só se vê bem com o coração", disse ele, numa das máximas colocadas em sua fábula. "O essencial é invisível aos olhos." Quem hoje tenta, por ignorância ou por fazer pouco da ética das relações sentimentais, diminuir a importância dessa obra maiúscula da literatura mundial, provavelmente nunca aprendeu essa lição.
A seguir, alguns trechos de um capítulo essencial do livro, o de número 21, no qual o pequeno viajante interplanetário encontra a raposa.
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
Mas a raposa voltou à sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra.
O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! disse ela.
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
Foi o principezinho rever as rosas:
- Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Chutômetro

Esta excelente piada circula por e-mail. Ela mostra o quanto tendemos a agir baseados apenas em meras suposições:
"Com a aproximação do inverno, os índios foram ao cacique perguntar:
- Chefe, o inverno este ano será rigoroso ou ameno?
O chefe, vivendo tempos modernos, não tinha aprendido como seus ancestrais os segredos da meteorologia. Mas, claro, não podia demonstrar insegurança ou dúvida. Por algum tempo olhou para o céu, estendeu as mãos para sentir os ventos e, em tom sereno e firme, disse:
- Teremos um inverno muito forte... é bom ir colhendo muita lenha!
Na semana seguinte, preocupado com o chute, foi ao telefone e ligou para o Serviço Nacional de Meteorologia e ouviu a resposta:
- Sim, o inverno deste ano será muito frio!
Sentindo-se mais seguro, dirigiu-se a seu povo novamente:
- É melhor recolhermos muita lenha... teremos um inverno rigoroso!
Dois dias depois, ligou novamente para o Serviço Meteorológico e ouviu a confirmação:
- Sim... este ano o inverno será rigoroso!
Voltou ao povo e disse:
- Teremos um inverno muito rigoroso. Recolham todo pedaço de lenha que encontrarem, teremos que aproveitar até os gravetos.
Uma semana depois, ainda não satisfeito, ligou para o Serviço Meteorológico outra vez:
- Vocês têm certeza de que teremos um inverno tão rigoroso assim?
– Sim, responde o meteorologista de plantão. Este ano teremos um frio muito intenso.
– Como vocês têm tanta certeza assim?
- É que este ano os índios estão recolhendo lenha pra cacete..."

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Violadores da democracia

Um delegado federal que se arvora de censor da liberdade de imprensa no país ao coagir repórteres da revista Veja, chegando a exigir deles a renúncia ao direito constitucional da preservação de fontes de informação. Um governador reeleito que se julga imune a ponto de nomear a seu bel-prazer a imprensa boa (a que lhe convém) e a má. Um presidente de partido e coordenador da campanha de Lula à reeleição que faz aflorar sua arrogância ao instar a imprensa a uma auto-reflexão, inclusive com a publicação de um desmentido formal a respeito da existência do Mensalão. Militantes leões-de-chácara que agridem jornalistas por eles considerados de oposição na preparação de uma entrevista coletiva do presidente recém-reeleito. O recurso constante, hoje como ontem, à Lei de Imprensa para cercear a liberdade de informação e expressão por parte de profissionais e órgãos de comunicação. O ressurgimento da malograda tentativa de instalar o Conselho Federal de Jornalismo, agora na forma de uma pretensa democratização dos meios de comunicação com a edição de uma lei geral para a mídia eletrônica (rádio e TV) que favoreça a participação comunitária e aumente o 'controle social' do conteúdo, como está previsto no programa de governo do presidente reeleito.
A escalada de atentados contra a liberdade de informação e opinião assume uma dimensão alarmante, nestes poucos dias que nos separam da votação do último domingo. No clima de exacerbação do furor censório de apaniguados do poder reconduzido pelas urnas, alguns jornalistas conhecidos deixam a máscara cair, não só assumindo sua condição de simpatizantes como ainda cobrando do governo providências contra o que, a seu ver, constitui um modo panfletário de distorcer os fatos noticiados. E as entidades classistas, com a Federação Nacional dos Jornalistas, Fenaj, à frente e os sindicatos atrás, ocupadas pela CUT e infestadas de petistas, calam-se, coniventes com o descalabro. Não fossem a OAB, a entidade dos advogados, e a ANJ, dos donos de jornal, não se ouviria hoje uma voz em defesa dos profissionais do ramo visados pelos agentes e surfistas desse tsunami nefasto, que querem arrasar não um reduto corporativista, mas sim um dos pilares principais da democracia no Brasil.
O direito à pluralidade de informações é, com certeza, a maior das conquistas obtidas pela cidadania com a redemocratização do país. Quando defendem a liberdade de imprensa, os verdadeiros democratas o fazem em nome do interesse maior da sociedade, jamais como paus-mandados das oligarquias que ainda detêm a posse de parte dos órgãos de comunicação no Brasil. Além do mais, a ingerência estatal arquitetada nesse caso está claramente a serviço de um projeto de poder, e não de alguma real necessidade de aumentar a massa de informações do povo mais humilde e iletrado.
Os quase 60 milhões de votos dados a Lula no último domingo expressaram uma legítima prática democrática. Por isso mesmo, não lhe conferiram, nem a ele e nem muito menos aos quadrilheiros de plantão que atuam à sua sombra e foram identificados, senão pela opinião pública, pelo próprio procurador-geral da República, poderes para tramar o estupro de uma conquista tão cara à cidadania. É preciso enxergar o que está de fato por trás dos atentados à liberdade de imprensa para não servir de massa de manobra e inocente útil aos violadores da democracia.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Onde estamos?

Se há algo insuportavelmente provinciano e atrasado em política, esse algo é com certeza o comportamento vil de políticos, militantes e simpatizantes que agem como se a vitória nas urnas lhes desse um salvo-conduto para pisar em adversários, declarados ou supostos. Não se trata apenas de fazer declarações sem um mínimo de comedimento. Estas, até se perdoam como produtos do calor da hora. Mas trata-se também, o que é grave, de tentar intimidar as pessoas, com o uso do aparelho ou dos aparatos governamentais. Dois exemplos desse tipo de comportamento foram dados, um pelo governador reeleito do Paraná, Roberto Requião, na segunda-feira, e outro por um delegado da Polícia Federal, ontem à tarde. E as vítimas, em ambos os casos, foram jornalistas.
Requião transformou uma entrevista coletiva em exibição mesquinha de revanchismo. Apoiado por uma claque de políticos e militantes, que vaiavam os jornalistas por perguntas por eles consideradas impertinentes, o governador peemedebista atacou parte da imprensa de seu estado, incluindo alguns jornalistas citados nominalmente por ele, pelo fato de ter quase perdido a eleição para o adversário, Osmar Dias, do PDT. Depois de algumas respostas irônicas ou de ignorar as perguntas formuladas, encerrou de modo abrupto e grosseiro a coletiva, quando a repórter Mari Tortato, da Folha de S. Paulo, lhe dirigia uma segunda indagação. De acordo com o site Comunique-se, interrompeu-a dizendo que ela já falara. E, ao ouvir da repórter que estava autorizada pela assessoria do governador, respondeu que então 'desautorizava' a permissão dada, acabando em seguida com a coletiva.
O delegado da Polícia Federal, de nome Moysés Eduardo Ferreira, agiu ainda pior em relação a jornalistas da revista Veja. Cinco deles foram intimados pela PF a depor, a pretexto de prestar esclarecimentos sobre uma reportagem publicada na semana retrasada, sob o título Operação Abafa, e três – Júlia Duailibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro - compareceram às dependências da força em São Paulo, na tarde de ontem. Para surpresa deles, o delegado os inquiriu como se fossem acusados, e não testemunhas. No melhor estilo DOI-Codi, praticado nas masmorras da ditadura, o delegado pressionou os jornalistas a revelar suas fontes, quis saber da orientação política do editor responsável pela reportagem, lançou mão de ameaças e ainda tentou distorcer declarações dadas ao ditar o texto para o escrivão, no que foi impedido pela representante do Ministério Público presente, Elizabeth Kobayashi. Por exemplo, segundo o site da revista, depois de indagar a Júlia Duailibi os motivos de ela ter escrito 'essa falácia' e de ouvir como resposta um questionamento sobre o sentido do depoimento, uma vez que ele já chegara a tal conclusão antecipada, Ferreira quis atribuir à repórter o termo que ele empregara, no depoimento ditado.
Como se não bastasse, ainda manteve retido durante horas o repórter Marcelo Carneiro, a ponto de a direção da revista ter de pedir a ajuda do senador Tasso Jereissati, presidente do PSDB, para interceder junto ao ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, a quem se subordina a PF, pela liberação do profissional.
Cabe a pergunta: onde estamos? Quando o representante de uma força policial federal exorbita de tal maneira de suas funções, agindo como um gorila censor e árbitro autonomeado da liberdade de imprensa, e o governo nada faz para coibir o abuso, somos obrigados a concluir que vivemos não numa democracia, mas numa republiqueta de bananas indigna de qualquer respeito.