sábado, 29 de setembro de 2007

O mito Guevara


A foto do pôster, de Alberto Korda

“Não vai aproveitar a história, sr. Scott?”, pergunta o senador Ransom Stoddard. “Isto é o oeste, senhor. Quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda”, responde o jornalista Maxwell Scott, enquanto rasga o papel em que fizera anotações da entrevista.

Mestre John Ford sabia do que falava quando sintetizou assim, nesse diálogo entre os personagens do senador (James Stewart) e do jornalista (Carleton Young), a história do homem que involuntariamente colheu as glórias de um ato de bravura realizado por outro (o rancheiro vivido por John Wayne), em O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, de 1962), sua derradeira obra-prima cinematográfica.

Lenda e fato. O binômio se aplica também à história de Che Guevara, o mito revolucionário que sobrevive ao passar do tempo no pôster famoso que gerações de jovens, muitos deles hoje de cabelos encanecidos, puseram em seus quartos para reverenciar o ideal do heroísmo altruístico.

A revista Veja que começa a circular hoje revisita a história, em reportagem de capa assinada por Diogo Schelp e Duda Teixeira. Traz alguns detalhes novos, mas não acrescenta muito ao que já se sabia sobre o Che, cuja figura romântica na lenda nada teve a ver com o homem, um comandante militar desastrado, um ministro incompetente e, acima de tudo, um assassino sanguinário e cruel.

Nenhuma reportagem, entretanto, por mais brilhante e reveladora que seja, conseguirá abalar uma versão cultuada universalmente, assim como ocorre no filme de John Ford, ainda mais quando o mito tem as dimensões de Guevara. Por isso, o verdadeiro herói da revolução que em 1959 derrubou o regime de Fulgencio Batista em Cuba, Fidel Castro, passará à história como um velho chato, que fazia discursos de sete horas, enquanto o falso herói, Ernesto Guevara Lynch de la Serna, nascido em Rosário, na Argentina, em 14 de junho de 1928 e morto em campanha na selva boliviana de La Higuera, em 9 de outubro de 1967, será sempre um ícone de jovens rebeldes à procura de uma causa. A diferença fundamental entre os dois é que um morreu pela causa, e ainda por cima sendo jovem, destemido e belo, enquanto o outro continua por aí vivo, embora com os sinais da velhice a sulcar o rosto desprovido de encantos e com o corpo arqueado e algo balofo pateticamente enrolado num uniforme militar.

‘Vivas intensamente e morras jovem. Serás um lindo cadáver’, dizia uma máxima em voga nos anos 50 entre os garotos da burguesia que, enfiados em seus blusões de couro e entre uma Coca-Cola e um racha ao volante de seus carrões envenenados, para se sentirem in curtiam isso de buscar algum sentido mais profundo para suas existências faustosas e vazias. James Dean, morto a bordo de seu Porsche Spyder prateado aos 24 anos, é o maior símbolo desse mal du siècle revigorado um século depois dos poetas românticos, na era do consumo made in USA que tomou conta do mundo após a Segunda Guerra.

Primogênito de família abastada, asmático, formado em Medicina, Guevara, em sua louca perseguição por aventuras, personificou a seu modo também esse inconformismo juvenil da época. Tinha 30 anos quando entrou triunfalmente em Havana para tomar o poder, com seus camaradas de armas. Pagou porém um tributo pela inexperiência. Tudo indica que procurava mascarar a insegurança com exageradas demonstrações de liderança e com seu radicalismo marxista, não hesitando em apertar o gatilho contra qualquer um que julgasse ser inimigo da causa.

Sua voluntariedade agressiva a serviço da noção – acertada, como a História do século 20 mostrou – de que não se implanta o comunismo a não ser pela via armada transformou-o num estorvo para Castro, interessado naquele momento em aproximar-se da antiga União Soviética para receber ajuda financeira e militar. A partir daí, começou o calvário da queda de Guevara, primeiro perdido entre as guerras tribais do Congo e depois nas matas inóspitas da Bolívia, cujo campesinato não demonstrou a menor receptividade à revolução intentada por ele. Capturado num dia e executado no outro, o guerrilheiro chamado por companheiros de ‘el chancho’ (o porco) por não gostar de tomar banho, foi lavado e penteado antes de seu corpo ser apresentado à imprensa internacional. E, segundo a reportagem da Veja, moradores das redondezas que estiveram na lavanderia do hospital em que o cadáver estava sendo limpo saíram impressionados com a semelhança física do morto, com aquela barba de muitos dias por fazer, com Cristo.

A boa pinta de Guevara, valorizada nesse dia e também antes, em 1960, pelo ângulo da câmera do fotógrafo cubano Alberto Korda no pôster famoso, contribuiu sem dúvida para o surgimento e a permanência do mito. Outros fatores favoráveis nesse sentido, como lembra a revista, foram o fato de ele ter morrido ainda jovem, aos 39 anos, e a ocorrência quase em seguida de uma onda internacional de protestos em defesa dos direitos civis, de agitações estudantis e da mudança de costumes ditada pela contracultura.

Mas se é importante saber como se forjou o mito, isso não garante que se possa descontruí-lo. A imagem romântica do Che, mesmo não sendo verdadeira, está profundamente inculcada em corações e mentes como um símbolo da mais bela das utopias humanas, a de que o mundo um dia será habitado não por opressores e dominados, ricos e pobres, mas por iguais. Ou seja, em matéria de elevação do espírito humano, o mito vale mais que a realidade. Nesse caso, publique-se a lenda, diria o jornalista do filme de John Ford.



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