O leitor Adolfo Zatz e o colunista Luis Fernando Veríssimo, cada qual a seu modo, expressam no Estadão de hoje essa estranha sensação, que parece dominar o país, de que nenhuma corrupção mais nos espanta ou indigna. Depois de lembrar a declaração do senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), de que “o Senado está sangrando muito mais do que o Renan”, Zatz escreve: “Eu acrescentaria: o Brasil está sangrando muito mais que os dois. O povo não agüenta mais tanta corrupção e impunidade, tudo sob as barbas do nosso presidente, que teima em se fingir de surdo, mudo e cego. Lula oficializou a corrupção no Brasil, que se tornou regra, não exceção”. E Verissimo, com sua capacidade incomum de abordar assuntos cabeludos com leveza, diz: “A própria indignação acumulada acaba tendo efeito anestesiante – o que mais há para sentir e dizer, depois da conclusão de que todo o mundo é corrupto fora o Jefferson Peres? (...) Como os banqueiros estão contentes e o povão reelegeria o Lula, seus improvisos e seus parentes num minuto, resta à política a fofoca e o concurso de oratória e à oposição a tênue esperança de um escândalo tão escandaloso que anule a anestesia”.
Há algo de muito grave acontecendo, de fato, ao sul do Equador e que nada tem a ver com a pane nos aeroportos. Há um país que nunca como agora mereceu ser chamado de gigante adormecido. Há uma população inteira sem saber o que fazer diante da sucessão de escândalos de corrupção nos altos escalões da República que acabam dando em nada. A anestesia geral, diante disso, é antes um bem que um mal, porque raiva em excesso mata. Mas e as conseqüências para o futuro?, pode-se perguntar. O que será feito das gerações que nos sucederão, privadas de noções mínimas de cidadania como resultado da impunidade reinante? Estamos condenados a ser uma nação de cínicos, afora os corruptos?
quinta-feira, 21 de junho de 2007
terça-feira, 19 de junho de 2007
Um olhar de repórter
Maria cresceu e virou dona. Pariu nove rebentos em seqüência. E quando os dois primeiros ficaram no ponto, avisou ao marido Gomercindo: eles vão estudar. Gomercindo não quis saber do assunto, desde quando filhos de analfabetos precisavam de vogais e consoantes. Dona Maria cerrou os dentes e diz que apanhava, mas os filhos seguiriam para o colégio tão certo quanto o sol nascia. Era 12 de março de 1964, ela lembra muito bem. O barrigão de nove meses estalava de dores quando caminhou arrastando Edir e Marlene pelos seis quilômetros de chão que os separavam da escola da Vila Rosa. Matriculou os dois filhos de manhã, comprou pata de rês para arrancar o mocotó, juntou lenha no mato, lavou roupa no rio Jacuí e ao anoitecer se deitou para parir Juraci.
Trabalhando dobrado para compensar a falta dos filhos na lida, voando com os bofetões do marido, cumpriu seu juramento. João Edir, Paulo César, Juraci, Larri e Toninho, o filho de criação, ela formou na quarta série. Ieda Marlene, Marli Ledi, Marisa Laureci e Marleci Rosane foram até a quinta. Gomercindo Júnior cursa o ensino médio. Tudo à luz de vela, que da outra não havia. Há 15 anos morreu o marido. Há dez, dona Maria encontrou o amor debaixo de um chapéu de barbicacho. Todos acharam que o destino havia se cumprido. Porque não conheciam bem dona Maria. Um belo dia, pouco mais de um ano atrás, ela cravou o olho no amado e sentenciou: Eu vou pra perto da capital procurar as letras. Se tu quiser vir comigo, tu vem porque eu te amo. Se não quiser, eu vou sozinha. Meu sonho é maior que tudo.
..........................................
Este texto, excepcional, é de Eliane Brum, um dos mais fulgurantes talentos da nova geração de jornalistas do país. Gaúcha, revelada na grande imprensa pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e hoje em São Paulo como repórter especial da revista Época, em 1999 ela publicou uma série de crônicas-reportagens naquele jornal sob o título A Vida que Ninguém Vê. Uma coletânea desse trabalho foi transformada em livro e publicada no ano passado (A Vida que Ninguém Vê, Arquipélago Editorial, Porto Alegre, RS, www.arquipelagoeditorial.com.br).
Ao debruçar-se sobre o cotidiano e as histórias de vida de anônimos moradores da grande cidade, a maioria deles pobres e iletrados, para extrair do que à primeira vista poderia parecer desinteressante relatos preciosos, quase épicos na descrição da resistência a adversidades, e de grande densidade humana, Eliane emociona sem deixar de fazer jornalismo.
Nesse sentido, ela se filia à diminuta corrente dos que praticam o chamado new jornalism no país, mas sua técnica difere da utilizada, por exemplo, por Gay Talese ou Joseph Mitchell, dois dos maiores cultores desse estilo de narrativa que aproxima reportagens de peças de literatura. Enquanto os dois americanos procuram valorizar o entorno para dar vida aos personagens, a brasileira consegue o mesmo efeito pelo caminho oposto, o de valorizar os personagens para iluminar os ambientes.
Num jornalismo escrito como o nosso, em que prevalecem o texto apenas correto e a informação burocrática, Eliane Brum representa uma saudável exceção à regra. Merece ser lida.
Trabalhando dobrado para compensar a falta dos filhos na lida, voando com os bofetões do marido, cumpriu seu juramento. João Edir, Paulo César, Juraci, Larri e Toninho, o filho de criação, ela formou na quarta série. Ieda Marlene, Marli Ledi, Marisa Laureci e Marleci Rosane foram até a quinta. Gomercindo Júnior cursa o ensino médio. Tudo à luz de vela, que da outra não havia. Há 15 anos morreu o marido. Há dez, dona Maria encontrou o amor debaixo de um chapéu de barbicacho. Todos acharam que o destino havia se cumprido. Porque não conheciam bem dona Maria. Um belo dia, pouco mais de um ano atrás, ela cravou o olho no amado e sentenciou: Eu vou pra perto da capital procurar as letras. Se tu quiser vir comigo, tu vem porque eu te amo. Se não quiser, eu vou sozinha. Meu sonho é maior que tudo.
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Este texto, excepcional, é de Eliane Brum, um dos mais fulgurantes talentos da nova geração de jornalistas do país. Gaúcha, revelada na grande imprensa pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e hoje em São Paulo como repórter especial da revista Época, em 1999 ela publicou uma série de crônicas-reportagens naquele jornal sob o título A Vida que Ninguém Vê. Uma coletânea desse trabalho foi transformada em livro e publicada no ano passado (A Vida que Ninguém Vê, Arquipélago Editorial, Porto Alegre, RS, www.arquipelagoeditorial.com.br).
Ao debruçar-se sobre o cotidiano e as histórias de vida de anônimos moradores da grande cidade, a maioria deles pobres e iletrados, para extrair do que à primeira vista poderia parecer desinteressante relatos preciosos, quase épicos na descrição da resistência a adversidades, e de grande densidade humana, Eliane emociona sem deixar de fazer jornalismo.
Nesse sentido, ela se filia à diminuta corrente dos que praticam o chamado new jornalism no país, mas sua técnica difere da utilizada, por exemplo, por Gay Talese ou Joseph Mitchell, dois dos maiores cultores desse estilo de narrativa que aproxima reportagens de peças de literatura. Enquanto os dois americanos procuram valorizar o entorno para dar vida aos personagens, a brasileira consegue o mesmo efeito pelo caminho oposto, o de valorizar os personagens para iluminar os ambientes.
Num jornalismo escrito como o nosso, em que prevalecem o texto apenas correto e a informação burocrática, Eliane Brum representa uma saudável exceção à regra. Merece ser lida.
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